No país da hipocrisia, em que não se deve tornar público o que é comum se dizer em privado, caiu como uma bomba as falas do deputado estadual por São Paulo, pretendente ao cargo de governador, Arthur do Val, mais conhecido como MamãeFalei, num grupo de Whatsapp, sobre as mulheres ucranianas, que seriam "fáceis por serem pobres". O país misógino e sexista, em que é comum os homens dizerem barbaridades sobre as mulheres, parece ter, de uma hora para outra, se tornado politicamente correto.
O susto e a perplexidade do deputado paulista (mais uma das várias criações lamentáveis da onda bolsonarista e de extrema-direita), com a repercussão de sua fala, mostra como para ele nada demais foi dito, nada que não estivesse acostumado a dizer e a fazer.
Ele não esperava que alguém do seu grupo de amigos se escandalizasse ou vazasse a conversa, já que julgava que todos que lhe ouviam consideravam ser normal homens com poder e dinheiro se apropriar dos corpos das mulheres, vê-las como meros objetos de satisfação de seus desejos e vontades, ainda mais se elas são pobres.
Seu entusiasmo incontido, que o levou a se apressar em transmitir aos amigos sua impressão da fila de refugiados ucranianos na fronteira com a Polônia, é o fato de que as carnes que estariam agora a venda e desfrute eram carnes brancas, eram carnes de mulheres loiras. Se no Brasil a carne mais barata do mercado é a carne negra e parda, Mamãe tinha que falar entre o entusiasmado e excitado ao se deparar com carnes branquinhas passíveis e possíveis de serem adquiridas e usadas a preços módicos.
A grande imprensa nacional, que não se escandalizara com as falas de membros do Movimento Brasil Livre, do qual o youtuber de direita é uma liderança, em relação a presidenta Dilma Rousseff, quando do golpe de 2016 - que essa imprensa apoiou e promoveu -, chamada de vagabunda, burra, prostituta, mandando-a ir para casa, voltar para o tanque, agora se mostrou profundamente indignada quando as vítimas são mulheres europeias e brancas.
A dupla moral da sociedade brasileira se soma ao moralismo de ocasião dessa imprensa, que sofre de crises de indignação seletiva movida por seus interesses econômicos e políticos. A mesma sociedade que agora não imagina – diante da alta escandalosa do preço dos combustíveis, voltada para beneficiar os acionistas privados da Petrobras (um dos motivos para a ocorrência do golpe do impeachment sem crime de responsabilidade e o apoio empresarial a Bolsonaro em 2018) –, produzir um adesivo em que uma mangueira de bomba de gasolina penetre o corpo do presidente da República, responsável por essa política de preços, da mesma forma que imprimiu e distribuiu maciçamente um adesivo para se colocar na boca do tanque de gasolina, onde o abastecimento se daria com a penetração da mangueira entre as pernas da presidente da República.
A fala abominável do deputado-empresário (tem empresas nos setores de reciclagem de resíduos metálicos, transporte, construção civil, estacionamento e combustíveis), expressa apenas a misoginia e o sexismo estrutural da sociedade brasileira. Essa noção de que os homens brancos, ricos e poderosos podem se apropriar dos corpos das mulheres, dos mais pobres, daqueles que lhe são subalternos e subordinados tem, no entanto, raízes bem mais profundas, na própria história do país.
Ela advém das formas de pensar, das mentalidades, das subjetividades produzidas pelo processo de colonização, pelo colonialismo. O processo de colonização foi possível, ele se viabilizou e se efetivou através da apropriação dos corpos dos indígenas e africanos, tanto para o trabalho, quanto para a reprodução física da mão-de-obra, através do estupro, da violência sexual, do rapto, da sedução dos corpos das mulheres indígenas e africanas, por parte dos homens brancos.
A constituição da sociedade brasileira é inseparável das práticas de escravização, de tortura, de castigo corporal, de exploração brutal da força de trabalho, de humilhação, de apropriação, de posse, de compra e venda das carnes e corpos de negros e indígenas, da sevícia e subordinação dos pardos, dos mestiços. A mentalidade senhorial que legitimou e justificou essas práticas considerava aqueles que ocupavam os estratos considerados subalternos da sociedade seres inferiores e corpos disponíveis e à mercê da realização das vontades e desejos daqueles que eram os senhores, os mandões, os donos do mundo.
Ainda hoje a burguesia brasileira, nossas ditas elites, agem como se o mundo, se a cidade, se a terra, se a mata, se qualquer espaço fosse somente seu, são espaçosos e desrespeitosos em relação a existência do outro, daquele que é diferente. Parcela das elites brasileiras, até da classe média, não se escandaliza com a inflação e alta dos preços, porque elas dificultam o acesso dos pobres a dadas coisas e espaços, ou seja, é bom que tudo esteja caro porque isso seleciona, torna seleto, dados locais como aeroportos, bares e restaurantes, até supermercados e shoppings.
O fato de pobre não poder ter carro por causa do preço dos combustíveis é motivo de júbilo para alguns que vão poder desfilar com seus carrões importados sem o trânsito estar atravancado por carros de pobres.
Mamãe apenas falou demais, pois expôs em público o que só se deve dizer nas raves de bacanas, nas tertúlias de cobertura, nas quadras de clubes privês, nas viagens de turismo sexual em busca das carnes exóticas.
As ucranianas, objeto de cobiça sexual do deputado moralista de extrema-direita (desconfie de todo moralista, costuma ser sempre um hipócrita), por serem bonitas (segundo o padrão ariano de beleza), por serem loiras e por serem pobres não são vítimas de exploração sexual, apenas agora, por causa da guerra e apenas por um brasileiro deslumbrado.
Uma boa parte das prostitutas que trabalham em países como Alemanha, Espanha, França e Itália provém dos países empobrecidos do leste europeu, dos países que fizeram parte da chamada cortina de ferro, ou seja, foram países socialistas, alguns ex-integrantes da União Soviética como a Ucrânia. As mulheres ucranianas são objeto do tráfico de pessoas para a prostituição realizado por várias máfias que atuam na Europa. As mulheres ucranianas são utilizadas como barrigas de aluguel por ricaços de todo o mundo que querem e não podem ter filhos.
Nesse momento, diante da guerra, uma clínica especializada em fazer inseminação artificial utilizando o útero das mulheres que se propõe a alugá-los por um bom preço, na cidade de Kiev, instalou todas em um bunker, muito bem abastecido de tudo, porque elas valem uma fortuna, já que, evidentemente, os donos da clínica ficam com grande parte do que é pago a essas mulheres. Muitas crianças já nasceram nesse período e não puderam ser entregues àqueles que as encomendaram, são mercadorias que estão num limbo jurídico e humano, elas nasceram, mas não receberam um nome, não têm pais e ainda não são filhos de ninguém, porque quem as pariu não as reconhece como filhos, apenas um objeto envolvido numa transação.
Não é de espantar, portanto, que um homem pardo que deve se considerar branco, da sociedade brasileira, marcada pelo hábito dos que têm poder e dinheiro de se apropriar e usar o corpo do outro, tenha se visto em casa e tenha ficado entusiasmado com o paraíso que descobriu para seus desejos de posse e apropriação dos corpos femininos, ao chegar na fronteira e em solo ucraniano. Ainda revelou que seu acompanhante, seu assessor, era um caçador de loiras, que saía pelo mundo a caçar a rara carne branca pobre e à venda, coisa não tão comum em nossas plagas, talvez enfarado das carnes pardas, pretas e amarelas que compra por aqui.
A fala de MamãeFalei colocou o país diante do espelho, nesse sentido ela pode ser terapêutica, desde que não seja considerada uma extravagância e uma raridade, cometida por alguém que, uma vez tendo seu mandato cassado, submergirá no anonimato de onde não deveria ter saído.
Muitos de seus colegas de Assembleia Legislativa, useiros e vezeiros das mesmas práticas, hipocritamente farão de conta que estão efetivamente indignados e, ao cassar seu mandato, estarão dando prova de honradez e moralidade. O que ele disse é imperdoável, mas não pode ser visto como algo fora do comum, infelizmente não.
O Brasil é um dos destinos mais ambicionados para o turismo sexual, que se agudizará se o projeto de lei que libera a construção de cassinos e toda a jogatina no país for aprovado definitivamente pelo Congresso. O mesmo Congresso Nacional, dominado pelo Centrão, que desconhece uma grande manifestação contra os projetos de lei que põem em perigo o meio-ambiente e a vida dos povos indígenas e aprova na calada da noite a urgência para a votação que libera a mineração em terras indígenas. Pode parecer que esses fatos nada têm em comum, mas infelizmente têm: eles representam o desprezo pela vida do outro, do diferente, a falta de empatia por aqueles dos quais o pensamento colonial colocou em dúvida até a humanidade.
Permitir que garimpeiros e mineradoras atuam em terras indígenas é a licença para o estabelecimento de conflitos, para a corrupção, a desapropriação e a morte dos povos indígenas. Mas quem se importa com isso! Assim como as mulheres pobres ucranianas, os corpos dos indígenas são corpos que não contam, são corpos para o uso e o abuso, são corpos a serem descartados uma vez utilizados, são corpos objetos de desejo e de repulsa, são apenas coisas as quais se utiliza ou delas se livram.
Mamãe falou o que deveria ter mantido no silêncio hipócrita do cotidiano: negros, mulheres, indígenas, homossexuais, transexuais, lésbicas, para o discurso colonial, que formou as nossas mentalidades, eram bestas, as carnes do pecado, selvagens, nefandos, hereges, monstros, aqueles dos quais não se devia dizer o nome. Grande pecado de MamãeFalei, falou demais, deu nome ao que todos acham normal que fique sem nomear ou se silencie.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.