Em que lugar fica a província?

O erudito potiguar Luís da Câmara Cascudo costumava se definir como sendo um “provinciano incurável”, por nunca ter saído de sua cidade e de seu estado de nascimento, por não ter migrado para a capital do país, para o Rio de Janeiro, onde chegou a residir, como estudante de medicina, como era comum ocorrer com todo homem de letras ou artista que buscava ter uma carreira de âmbito nacional ou ser um nome nacionalmente reconhecido.

Na capital que era normalmente nomeada de metrópole ou de grande cidade se concentravam não apenas os órgãos da administração federal, os empregos públicos mais cobiçados, que podiam se constituir no meio de sobrevivência para aqueles que se dedicavam as atividades intelectuais, de remuneração e sucesso incertos e, quase sempre, incapazes de dar um bom padrão de vida, mas também os principais meios de comunicação (jornais, revistas, estações de rádio e, depois, de televisão) que garantiam não só o emprego de muitos, mas permitiam que fossem conhecidos por um público letrado de todo país.

No entanto, se partimos do próprio exemplo de Câmara Cascudo, podemos perceber que o ser provinciano e, por extensão, onde fica, onde está a província, é não apenas motivo de controvérsia, mas exige que questionemos as hierarquias espaciais e, por extensão, a hierarquia de valores, os preconceitos e estereótipos que se expressam na dicotomia entre metrópole e província, centro e periferia, capital e interior, cosmopolita e provinciano.

Luís da Câmara Cascudo, como sabemos, mesmo residindo a vida inteira, numa das menores capitais do país, com aparelhos culturais deficientes, num mundo das letras e das artes relativamente acanhado e que girava, em grande medida, à sua volta, foi capaz não só de se tornar um intelectual de renome nacional, como de renome internacional. Tecendo, através da escrita de correspondências, uma extensa rede intelectual, que extrapolava as fronteiras nacionais, o colecionador de crepúsculos, fez de sua própria casa parada obrigatória de intelectuais, artistas e políticos de todos os quadrantes, que deixavam registrado em suas paredes, o testemunho de suas presenças ilustres.

O mesmo se pode dizer de Gilberto Freyre, aquele que, curiosamente, foi um defensor do que nomeou por vezes de regionalismo e por vezes de provincianismo, como marcas que deveriam ser preservadas nas produções culturais e intelectuais brasileiras. Sem nunca ter saído do solar de Apipucos, na cidade do Recife, sem ter abandonado sua cadeira de balanço e sua prancheta apoiada na perna, Freyre se tornou não só um autor nacional, o elaborador de uma das mais influentes interpretações do Brasil, como um dos mais conhecidos intelectuais brasileiros em todo o mundo.

Mas, será mesmo que podemos considerar Gilberto Freyre um provinciano simplesmente porque ele preferiu passar a sua vida no Recife e não ir morar no Rio de Janeiro, como viu tantos amigos seus fazerem? Um dos primeiros intelectuais brasileiros a ter uma formação pós-graduada no exterior, um intelectual com uma ampla rede de relações, mantida através de constante correspondência, com parceiros nacionais e internacionais, tendo realizado inúmeras viagens no interior do país e fora dele, não podemos considerá-lo provinciano, mesmo que ele até pudesse reivindicar essa identidade, somente por ele não morar na capital do país.

Será que viver na cidade do Recife foi alguma vez viver em uma província? O discurso do provincianismo pernambucano, às vezes emitido com orgulho, se sustenta? Sabemos que, desde o domínio holandês, ainda no período colonial, quando a cidade se tornou um dos portos mais importantes da América, aberto para o comércio de além-mar, o Recife sempre foi uma cidade cosmopolita, onde as novidades da Europa chegavam com certa regularidade. No início do século XX ela era uma das três maiores cidades do país, caracterizando-se por ser o centro econômico e político de uma vasta área que vai se configurar, paulatinamente, como região Nordeste.

Além disso era, como é ainda, um grande centro cultural e intelectual, com a circulação de vários jornais e revistas, entre eles o jornal mais antigo da América Latina, com a confluência de grande parte dos jovens das elites dos estados vizinhos, que vinham cursar a importante Faculdade de Direito. Foi das rodas boêmias de intelectuais, das redações de jornais e revistas, das estações de rádio recifenses que saíram grande parte dos maiores nomes da cultura brasileira do século XX. Muitos nomes irão se consagrar nacionalmente antes mesmo de migrarem para o Rio de Janeiro: Silvio Romero ou Álvaro Lins já eram conhecidos quando chegam a capital do país. Alguns terão nomes nacionais sem nunca abandonarem o Recife, como Mauro Mota e Ariano Suassuna, deixando claro a relatividade de onde fica a província e o provinciano.

É curioso notar que grande parte dos autores que se tornaram os grandes nomes da literatura brasileira no pós-trinta, não se reuniram ou se encontraram na autonomeada metrópole. Suas primeiras obras, que se tornaram grandes êxitos editoriais, não foram escritas no Rio de Janeiro, embora tenham necessitado do aval da editora José Olympio, aí localizada, para ganharem projeção nacional.

Foi na pequena cidade de Maceió, no início dos anos trinta que, por uma série de circunstâncias, se reuniu grande parte daqueles que seriam os autores do chamado romance de trinta ou intelectuais de nomeada dessa geração: José Lins do Rêgo (que aí escreveu os romances Menino de Engenho e Doidinho); Rachel de Queiroz (que aí escreveu O Quinze); Graciliano Ramos (que aí escreveu Caetés); Jorge de Lima; Aurélio Buarque de Holanda; Ledo Ivo; Valdemar Cavalcanti; José Auto. Posteriormente eles saem do que seria a província para conquistar a metrópole, serão “os búfalos que vieram do Norte”, segundo a visão chauvinista de Oswald de Andrade.

Se tomarmos a origem etimológica da palavra província, o que aconteceu com o chamado “grupo de Maceió” é um contrassenso. Província vem do latim pro (diante de, à frente de, além de) mais vincere (vencer, vencido), ou seja, uma província era um território conquistado pelos exércitos romanos, uma parte do Império afastada da cidade de Roma, que seria seu centro, uma área anexada e que ficava nas margens do território original dos domínios romanos, portanto, o provinciano chegava à capital do Império como um derrotado. No entanto, no caso dos escritores e homens de letras reunidos no que seria a provinciana Maceió chegam à capital não apenas para vencer, mas já chegam como vencedores.

A metrópole, a capital, o centro se rende aqueles que seriam provincianos que, no entanto, praticam a escrita literária mais antenada com os novos tempos, com a nova estética modernista que, por seu turno, teria surgido numa província, São Paulo, e não na metrópole, o que é motivo de controvérsias até hoje. Se levarmos em conta a dimensão econômica e mesmo a dimensão política, embora não contasse com a capital do país, notadamente a partir dos anos vinte do século passado, São Paulo já disputava com o Rio de Janeiro a condição de metrópole, de centro do país, embora uma boa parte da produção cultural paulista poderia receber o epíteto de provinciana.

Aliás, o escritor e jornalista Xico Sá costuma chamar atenção para o provincianismo que graça em amplos setores da intelectualidade paulista. Eu diria que, por mais contraditório que possa parecer, muitas vezes aqueles espaços que se veem como centro são muito mais ignorantes do que se passa para além deles em termos culturais, artísticos e intelectuais do que aqueles que são ditos e vistos como provincianos. A província sempre está de olho na metrópole, recebe as informações do que nela acontece e procura reproduzir, muitas vezes criativamente e com sucesso em termos locais.

É uma generalização preconceituosa, que em muitos casos concretos não se sustenta, de que aqueles espaços vistos e ditos como provincianos, são atrasados, tradicionais, conservadores, desinformados, apartados do que se passa no mundo. O Brasil é um país continental, um país policentrado, com áreas distintas do país sendo marcadas por dinâmicas intrarregionais e internacionais específicas. Achar que em um país dessas dimensões possa haver algum espaço que detenha o monopólio da produção cultural e intelectual, para onde tudo conflui e de onde tudo reflui é desconhecer a variedade das dinâmicas da produção intelectual e cultural desse enorme país.

Como explicar que movimentos culturais de vanguarda na cultura e nas artes brasileiras surgiram nas ditas províncias: o tropicalismo, o axé-music, o samba-reggae na Bahia, a poesia processo que surgiu simultaneamente no Rio Grande do Norte e no Rio de Janeiro, o movimento armorial, a psicodelia pernambucana, o movimento manguebeat em Pernambuco, o grupo Jaguaribe Carne na Paraíba e tantos outros espalhados por todo o território nacional.

Diante desse quadro podemos nos perguntar, onde fica a província e quem é provinciano? Depende de quem olha e de onde se olha, sendo essa classificação, portanto, relativa, situacional e relacional, dependendo de contextos e pontos de vista. Essas classificações configuram lugares e hierarquias que expressam lutas geopolíticas, disputas por hegemonia no interior dos vários campos que conformam a vida intelectual, artística e cultural do país.

Pode-se ser provinciano vivendo no Rio de Janeiro e São Paulo, aliás há uma grande probabilidade à medida que esses lugares bastariam a si mesmos, não precisariam dos outros, nada de interessante haveria fora de sua geografia, a não ser o almejado exterior do país. Pode-se ser cosmopolita vivendo no interior do país, pode-se ser metropolitano, do ponto de vista intelectual e cultural, mesmo vivendo numa pequena cidade de qualquer região do país.

Agora mais do que nunca, mas isso nunca foi uma impossibilidade completa, desde que se fosse pertencente as elites econômicas e culturais, bastando ter recursos suficientes. Infelizmente vivemos num país onde as profundas desigualdades sociais e raciais podem fazer do morador da periferia de uma grande cidade uma pessoa com muitas dificuldades para acessar os bens culturais e artísticos produzidos no país, embora saibamos que, mesmo nessas condições, os pobres e pretos resistem e resistem produzindo beleza e sabedoria com alcance internacional, como o fenômeno das escolas de samba e do funk não me deixa mentir.

Os ricos, moradores do dos condomínios de luxo, são às vezes mais provincianos (inclusive em seu colonizado louvor pelo estrangeiro) e ignorantes do que esses que tinham tudo para serem eternos excluídos. João Gilberto saiu de Juazeiro, Gilberto Gil de Ituaçú e Tom Zé de Irará para revolucionarem a música brasileira com a bossa-nova e o tropicalismo e o fizeram porque já ouviam as sonoridades do Brasil e do mundo em suas províncias, ou seja, mesmo residindo aí não eram provincianos.