Sem conseguir engravidar, vi uma foto no grupo de adoção e tive certeza de que era minha filha

A saga dolorosa, mas apaixonada, de uma mulher e uma menina em busca do carinho perdido

“Não estamos sozinhos no mundo, em uma canoa no meio do mar”, Rubem Braga escreveu. Mas às vezes nos assalta o espanto da solidão. No chuveiro, no ônibus, entre as árvores ou no cemitério. Na fissura da madrugada, soluço baixo de dor. Quero te apresentar a Ruth, que sentiu essa madrugada se repetir todos os dias por longos meses. Canoa no meio do mar. 

Nas horas de silêncio e vento cruel, ela começava a lembrar. E nem sempre lembrar é bom. Saudade, dizem, não tem alegria alguma. Suga a calma, a paciência. E a saudade da Ruth ainda era primitiva. Nasceu quando ela viu a foto da Janaína. Era um retrato sem rosto, a menina de cabeça baixa pintando papel. Mas foi ali que a canoa começou a virar. Para tornar oceano.

Eis a cena. Ruth era voluntária na Acalanto Fortaleza, grupo de apoio à adoção no Ceará. Chegou a eles o caso da Janaína – inclusa na lista para ser adotada por alguma família. De mão em mão, as fotos da garotinha iam passando para que conhecessem quem era ela. Três anos de idade na pele preta, bonita e suave. Um ar puro e doce. Quando as imagens ganharam as mãos da Ruth, alguma coisa se moveu. Dava pra ver. Ela não aguentou.

“É minha filha”. Quem estava ao lado, encorajou. Quem estava de longe, talvez até tenha escutado o grito. Ali Ruth aprendeu que, na vida, a gente consegue ultrapassar a plena certeza da morte. Vão surgindo mais convicções ao longo do caminho, embora ainda tão poucas. Janaína era certeza – limpa e concreta. Era sua filha. A menina que nunca veio, mas chegou. 

Não foram poucas as tentativas de engravidar. Ruth e Igor, o marido, sonhavam em preencher o sofá. Comprar os brinquedos, vestir as roupinhas, matricular na escola. Mas o consolo nunca vinha, apesar de também não haver frustração. Eram apenas sinais de que ainda não. Não era a hora. A filiação à Acalanto Fortaleza representava talvez a extensão do querer: em algum lugar, uma família também sonharia com brinquedos, roupinhas e estudo. Queriam ser felizes. E Ruth emplacaria esse desejo. Colorir o universo.

Não imaginou, porém, que a vontade faria parto fora dela. Alguém gestou a vida de Janaína e a vida de Janaína foi gestada aqui fora – embora entre muros, recusas, coisas passíveis de severa adaptação. Até Ruth conseguir adotar a menina, foi outro parto. Cirurgia dolorosa e de risco. Ainda que voluntária na Acalanto Fortaleza, ela nunca pretendeu adotar alguém. Logo, não constava em nenhuma fila de adoção. Mas precisou entrar. E aguardar. E sofrer.

É que não suportava mais a vida sem Janaína. Ela precisava vir, como quem volta, para o colo que passou a mantê-la. Foram meses de espera e choro. Lembra a madrugada do início do texto, soluço baixo de dor? Toda vez que a já filha ia para um novo espaço de acolhimento ou era abraçada por uma nova família, o desespero se achegava. Silencioso, esmagava. Mas também era combustível. Não desistiria.

Em uma manhã de surpresa alguma, o telefone tocou: “Ruth, quer conhecer uma criança?”. Era ela. Sempre foi ela. Agora, de verdade. Janaína vinha. “O amor que sinto pela minha filha é tão grandioso que o universo até parece um grão de areia”. 

E foi de grãozinhos construído o carinho. Por conta da jornada tão árdua até ali, Janaína precisou de acompanhamento psicológico e medicações. Era acometida de algumas limitações, haveriam de trabalhar nisso também. A força-tarefa converteu-se em fortaleza. A menina chegou à definitiva família com cinco anos e 11 meses de idade. Era 22 de março de 2016. 

Enquanto conto esta história, é possível que Ronda, a vira-lata do clã, esteja engalfinhada com algo, brincando de viver. E Janaína talvez olhe para a mãe, o pai e a irmã que ganhou do pai, Ellen. Aquela bebê do retrato-parto hoje tem 12 anos. Gosta de nadar, sorrir, estar nos grupos do WhatsApp. É firme e atenta. Não é mais canoa no meio do mar. Ninguém é, né? A gente só precisa se espantar com as coisas certas. 

Na travessia de pequenos grandes calvários de um corpinho tão miúdo, Janaína me permite completar o texto de Rubem Braga com a leveza de quem descobriu um novo ser dentro de si. Ruth ouve tudo junto a ela, não desgruda mais. Diz assim: “A nossa vida não é apenas esta velha canoa, esta vela encardida e pequena, este remo úmido. Somos gente da terra, sem nenhuma evasão nem mistério. Conversamos”. Quer saber, Rubem? Acreditamos. E amamos.


Esta é a história de amor de Ruth Sousa e Janaína Ribeiro. Envie a sua também para diego.barbosa@svm.com.br. Qualquer que seja a história e o amor.

 

*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor