Não existe um ranking das pessoas mais amadas do mundo. Mas existem os nossos rankings, nossas estatuetas, as almas que o coração premia. Newton Rodrigues de Albuquerque é um dos troféus de Denise Saboia. No anoitecer da vida, recebeu presente mágico da filha: a possibilidade de tomar o cafezinho que tanto adorava da forma como era antes.
Explico: em 2004, o economista aposentado sofreu um Acidente Vascular Cerebral (AVC). Baque grande, como imaginado. Coisa muito cruel. Principalmente porque arrancou a possibilidade de sustentar objetos nas mãos com a velha estabilidade. Água? Derramava do copo tremendo. Chá? Igual movimento. Café, bebida favorita: esparramava pelo dedo, pela roupa, pela mesa.
Percebendo realidade tão difícil, Denise tratou de fazer algo. Não podia deixar alguém tão querido passar por aquilo. Seu Newton era especial, ultrapassava o limite da paternidade. Exalava exemplo. Nasceu em Campina Grande (PB) e foi menino para o Rio de Janeiro ganhar a vida. Lá, conheceu Júlia, a quem devotou paixão e promoveu casamento.
Lá também se formou em Economia, deixando de lado o sonho de ser médico porque não conseguia passar no vestibular de Medicina – esses detalhes da jornada que definem tudo. Mesmo assim, montou laboratório de análises clínicas e continuou alicerçando o caminho entre planilhas e cálculos financeiros. Foi feliz, realizado. Até vir a tragédia.
Mas Denise a contornou com aquilo que tem de mais precioso: o gosto por criar objetos com as mãos, dar existência carinhosa a seres inanimados. É ceramista. E assim gestou a Xícara Fish, pensada exclusivamente para que o pai não entornasse café nem precisasse beber de canudinho – uma vez os dedos não sustentarem canecas com alça tradicional.
A peça tem anatomia simples, mas funcional: afasta o corpo da xícara à alça, fazendo com que quem tem pele fina ou, feito seu Newton, não consiga controlar o movimento das mãos, possa tomar qualquer tipo de bebida com maior facilidade, sem queimar os dedos ou deixar que derrame. “Dei de presente a ele no Dia dos Pais, em 2004. São 20 anos do invento”, diz.
Ela lembra da reação e, quando o faz, chora. O olhar quase infantil de surpresa, a descoberta da esperança, o corpo enrugado outra vez jovem pela força do sentir. Não é exagero dizer que, naquele instante, foi refundado o universo. Encarou a esposa, como se dissesse: “Olha só, agora não vou derramar mais café em nada, você não precisa reclamar”.
Existiu a felicidade, e se sabia disso. Mais de uma década assim até que, em 2020, aos 89 anos, seu Newton virou estrela. Denise não esmoreceu: tratou de mantê-lo assim, brilhando. Porque, no ano seguinte, patenteou a Xícara Fish no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) de forma a proteger a própria criação. Torná-la registro oficial.
“Também foi por motivo afetivo, e não financeiro. Vi que estavam começando a copiar a xícara – dando, inclusive, o mesmo nome que eu tinha dado. Logo ela, que eu tinha feito pro meu pai… Assim, resolvi protegê-la por ele e porque foi uma criação totalmente minha”.
Obra resultado de muitos processos. Carioca de nascença, Denise descobriu-se ceramista cedo, ainda na adolescência. Residia em João Pessoa (PB), último reduto do pai, e teve como mestre Francisco Brennand, um dos maiores escultores, desenhistas, pintores e ilustradores brasileiros. Hoje, aos 61 anos, segue no ofício e mantém em Fortaleza a Vila Arte.
A escola de cerâmica e ateliê realiza cursos, vivências e aprendizados tendo como foco o terno modelar da argila. A cada produção, fica mais claro o quanto essa arte cresce envolvida pelo que há de mais bonito. Quem se dispõe a criar, sempre pensa em outro alguém – um parente, um amigo, um amor. Fazer dedicado.
A Xícara Fish – intitulada assim por lembrar um peixe ao ser visualizada de cima – não foge à regra. Foi feita em um dia, tamanha a vontade de Denise de devolver alegria ao pai. No correr do tempo, passou por aperfeiçoamentos até a configuração atual: item desejado, comercializado e até cidadão do mundo. Já ultrapassou o Brasil.
“A cerâmica me abriu vários caminhos. Eu me realizo profissionalmente. Por meio das aulas, dou oportunidade a pessoas que têm problemas, que lidam com depressão, por exemplo, a investir o tempo em um hobby criativo, leve e bom. É a forma que elas têm de ficar bem”.
Talvez seja isso o gostar de verdade: se colocar no lugar do outro. Sentir as necessidades e chegar junto para prover mudança. Aonde quer que esteja, Newton Rodrigues de Albuquerque decerto agora sorri porque sabe que, em algum ranking das pessoas mais amadas do mundo, ele ocupa o topo. Basta olhar para o verso da xícara: “Para o meu pai tão amado! Denise”.
Esta é a história de amor da ceramista Denise Saboia e do pai dela, Newton Albuquerque. Envie a sua também para diego.barbosa@svm.com.br. Qualquer que seja a história e o amor.
*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor