Quando escreveu "vai ver onde vamos parar", ao reprovar a bissexualidade de um personagem das HQs, Maurício Souza foi profético. Três semanas depois dessa declaração, a polícia de Los Angeles precisou mobilizar homens após quadrinhistas serem ameaçados de morte por fãs de heróis que se comportam como violões e o jogador de vôlei se tornou celebridade no Instagram e possível candidato a um cargo eletivo, gabaritado por seus problemas com a comunidade LGBTQI+.
Casos como esse deveriam nos ajudar a repensar a cultura do cancelamento.
Não se trata de uma convocação a passar pano para comportamentos idiotas e/ou criminosos. Aliás, fugir à lógica binária é imperativo - e urgente.
Para casos assim, há a justiça. Se a justiça é lenta ou, com o perdão do paradoxo, injusta, o caso é discutir exaustivamente a questão, mobilizando-se e pressionando para que o quadro mude. O discurso é utópico, certamente, e demasiado distante da realidade de qualquer horizonte de expectativas razoáveis.
Contudo, acaso é melhor tentar apagar o fogo com gasolina?
O crescimento de Maurício Souza não é casual. Socorreu-lhe uma massa ressentida, mobilizada pela birra, na lógica binária do "inimigo do meu inimigo é meu amigo". Em parte, o palanque que conseguiu veio de quem desejava uma expiação pública por seus atos. Exigia-se uma retratação, para que fosse, claro, repudiada.
Mas, afinal, de que serviria esse pedido de desculpas e o quão distante ele está da justiça, de fato? Que um sujeito acuado, como temor da punição, repudie o que fez, é algo que a psicologia mais elementar explica. Desculpas não desfazem atos. E, mesmo de um ponto de vista moral ou religioso, elas só têm validade se forem sinceras.
Afinal, de que servem as desculpas de alguém que está apenas com medo de ser punido? De um LGBTQIA+fóbico, por exemplo, pouco se ganha com uma retratação forçada pelo medo de ir em cana. Não se pode esquecer que não é suficiente não ser LGBTQIA+fóbico. É imperativo ser anti-LGBTQIA+fóbico. E isso vale não só para quem deixou o ódio escapar da língua, quase sem querer.
Não faltam casos recentes em que operou a mesma lógica. Pode ser o registro de violência doméstica DJ Ivis, o suposto estupro televisionado de Nego do Borel ou a esposa de Wesley Safadão furando fila para furar o braço. Nas redes sociais, a mobilização por pedidos de desculpas públicos foi maior que a cobrança à justiça de que fizesse seu papel.
À justiça demorada, complexa e silenciosa, prefere-se uma ficção rápida e a encenação de um texto pobre e caricato. No fundo, o que se pede não é uma virada de chave, uma mudança de substância, mas uma humilhação feita de autocontrole e dissimulação.
Seja sonso, é que se sussurra nas entrelinhas. O algoz, sem se dar conta, dá a senha de liberdade para quem deseja punir. Justiça tem a ver com a razão. Quando esta se ausenta leva consigo aquela.
Aos violentos e aos corruptos, que se deseje não o calor do destempero da multidão enfurecida, mas o frio da justiça. Que venham a tona não a mentira que deles, tolamente, se exige, mas as verdades onerosas que querem esconder.