Um cronograma completo: sexta-feira sair no fim de tarde iluminada da escolinha do bairro, de bochecha pintada com uma borboleta gigante, carregando uma máscara de papel toda enfeitada de confete e lantejoulas que eu mesma havia ornado na tarefa de classe. Depois, nesse mesmo dia, podia ficar acordada até mais tarde e correr na rua de calçamento com os irmãos, primos e vizinhos. Começavam ali nossos Carnavais.
No sábado, acordar nem tão cedo e nem tão tarde. E preparar as vasilhas pra fazer o tradicional bolo em família da tia e, com sorte, esperar sobrar uns restos de farinha de trigo pra voltar pro meio da rua e fazer chuva de branco na festa improvisada da esquina de casa. E rir, gargalhar muito, correr sem medo, sem pressa e sem freio. Sorrir mais e voltar pra casa não suja, banhada de boas energias.
Tinha um bloquinho improvisado na rua que nem era tão bem visto por uns pais, mas também não era nada demais. Então, a gente ia. Cantava umas músicas de muito mais antigamente que nós, e outras que eram nossos axés e bate-latas de Olodum, Timbalada e muito mais. E a gente dançava arrodeando os quarteirões que eram pequenos no bairro da infância. Criança, jovem e adulto tudo junto. Uns com e uns sem fantasias de Carnaval.
No início da noite tomar banho pra ficar contando histórias de terror na calçada até tarde - de noite não valia brincadeira de farinha e goma. No meio de tudo, planejar o dia seguinte de mais folga, mas projetar também como seriam os nossos Carnavais da juventude que estava por vir, com viagens, fantasias, namoros e amizades de para sempre. Fantasiar nosso futuro.
Naquela época, eu paquerava insanamente com uma fantasia que tinha pra vender no armarinho da esquina. Eu não faço ideia do que era, mas tinha saia de seda com véu e meia arrastão azul pra completar. Lembro de ter ganhado a fantasia quando o Carnaval acabou. E confesso ter ficado mais feliz porque não ia correr o risco de pegar chuva de branco na roupa da cor do céu.
Eu tinha mais eventos desse tipo ao longo daquelas semanas de feriado prolongado, sem precisar ir muito longe de casa. Domingo, segunda, terça, quarta até o meio-dia… Muitos dos meus Carnavais de infância eram assim, experimentando ideias, sentindo as pessoas através de suas histórias e respirando fundo a liberdade do meio da rua.
Em algum intervalo dos dias, tinha também os momentos de ouvir histórias dos outros Carnavais de antigamente: "a gente andava em cima dos carros no interior dançando e cantando, mas nesse único Carnaval que pulei na vida, quando era moça, perdi totalmente a voz de tanto que aproveitei", dizia a mãe.
Hoje em dia, o pai também rememora as histórias que também já nos contou tempos atrás, que os seus Carnavais de antigamente, décadas 80 e 90, eram na inesquecível Paracuru. "A gente ia sem nenhum tostão no bolso, nos carros caindo aos pedaços, e ia sem alugar casa nem nada. Ficava no meio do tempo bebendo e se divertindo, e depois voltava pra casa".
E nesse tempo de vaivém, alguns momentos na vida que funcionam como marcos temporais e também territoriais da nossa história. São lembranças que nos ajudam, muitas vezes, a nos reconhecer e a construir (ou reconstruir) a nossa identidade - e as dos nossos. Ao longo da nossa existência, muitas épocas são assim, como o Carnaval. A gente sai da rotina e experimenta mundos.
E toda vez que chega essa época, eu volto a esses que são os primeiros Carnavais que tenho na memória, e que vêm à mente referendando não só os banhos de farinha e ovo, mas me mostram o quanto algumas ideias, desejos e sensações permanecem na gente. O quanto nossa história atravessa lugares, pessoas, mas é também atravessada por espaços e ideais que ajudam a nos contar.
Sabemos quem somos também ao relembrar de onde viemos e por onde passamos na vida, quem nos atravessou e de que maneira as travessias foram incorporadas em nossa forma de experimentar o mundo. Por isso, cada vez que penso nos risos, brincadeiras, fantasias e danças no meio da rua, certas ruas, penso que existem várias formas de contar a minha história, e uma delas é justamente voltando ao que de antigamente guardo em mim, de nós - sobre tudo que temos. Quem somos é tudo que estamos aqui.