Uma casa antiga, patrimônio de uma cidade; uma carta de amor perdida e encontrada após quase um século; fragmentos de uma história que seria transformada em filme e, assim, deixaria o privado para se tornar tema público. Essas palavras narram uma cena de novela que me deixou mexida, curiosa e reflexiva.
Alguns dias depois foi o momento de um vídeo em rede social digital deixar-me confusa: música e imagem não se encaixavam bem na minha cabeça: Juliette cantando e dançando ‘Vem galopar’, numa adaptação da canção ‘Pagode Russo’ de Luiz Gonzaga. Baião e trap - ou vice-versa? Alguma coisa dali eu lembrava, mas nada dali eu conhecia. A espécie de bug na minha cabeça, entendi logo depois, é porque letra e ritmo não se alinhavam com o que eu já tinha guardado na memória. Mas nada contra!
Novamente, fiquei mexida, curiosa e reflexiva... quem não lembra também da imagem criada por Inteligência Artificial da cantora Elis Regina? Quem sabe o que ele iria querer hoje? Será que herdeiros e admiradores conseguem imaginar o que pensaria Gonzagão ao ouvir a polêmica mistura de funk, cha cha cha, trap com forró junino de duplo sentido cantado por Juliette e ‘inspirado’ na canção do rei do baião?
De quem é nossa memória depois que morremos?
O objetivo deste texto não é fazer uma leitura crítica sobre música - não tenho formação e nem interesse neste ponto exatamente. Minhas divagações, há alguns dias, ocorrem justamente sobre o trato com a memória dos nossos e, um dia, com qual trato será mencionada a nossa história individual.
E não é só ‘gente famosa’ que tem memória. Todos nós, seres humanos que somos, temos a nossa história, nossos legados e as experiências aqui vividas ou contadas, essas que de uma forma ou outra irão permanecer, ainda que sejam apenas guardadas em nossos álbuns de família, ou nas cartas (e-mails) de amor que trocamos na vida.
Podem, no entanto, estar em obras de arte que criamos, em livros escritos, em fotografias ou mesmo nos nossos guardados mais íntimos, aqueles que talvez sejam descobertos apenas depois que partirmos desta vida. Com quais respeitos tudo o que fica de nós, dos nossos, devem ser tratados? Como é que, nesse mundo absurdamente mediado, as memórias alheias devem ser tratadas? Quem sabe…
Será que já pensamos em algum momento de que modo queremos ser lembrados quando morrermos, quais legados desejamos que sejam disseminados (se almejamos isso?) Em que ponto o avançar do mundo - entre tecnologias, costumes e tradições - poderá de alguma forma atravessar o que aqui deixamos ou atropelar nossas identidades, aquilo que, para sempre, um dia seremos, embora não mais aqui estejamos.
De que maneira queremos também ver a memória dos nossos expostas? Suas imagens físicas, as suas histórias, sejam de amor, de dor, de revoluções ou mesmo de involuções. O que fazer se um dia se tornam públicas as cartas de amor trocadas entre os nossos antepassados e hoje guardadas a muitas chaves?
Quem se importa com que vão fazer com a minha memória depois que eu morrer? - certamente muitas pessoas devem pensar isso. Mas a construção da nossa história, da identidade de territórios, povos e nações passa pela história individual, pela memória social e afetiva de nós, dos nossos, dos nossos ancestrais e de quem está porvir. Pensar sobre o após a morte é uma maneira de entendermos o quanto estamos aqui vivos, e os impactos de nossa existência para o futuro.
A polêmica em torno do ‘Vem galopar’ de Juliette talvez nos instigue a pensarmos sobre a morte e também sobre tudo que permanece depois de partirmos, e depois que os nossos também se forem, e sobre quem já não está mais entre nós. Na forma como queremos ser lembrados - ou não. Na maneira como almejamos estar dispostos nas vitrines de vida que, com o avançar do tempo, mudam, ganham novos sentidos e podem ser exatamente tudo aquilo que sempre sonhamos ou exatamente aquilo que jamais desejamos para nós.