É bem verdade que parar nos faz bagunçar os pensamentos. Tem sido assim há tempos em mim. E hoje o foi mais uma vez. Recebi a notícia da morte do jornalista e professor Anderson Freire Sandes, nessa segunda-feira (11), ainda na redação. Doeu. A memória deu uns saltos. Mas logo segui a rotina.
Horas após o fim do expediente, a memória, feito fio atravessador que une coração e mente, doeu ao puxar as outras perdas que tivemos nos últimos tempos de colegas do jornalismo cearense com os quais em algum momento da vida tive convívio. Por menor que tenha sido o convívio, nossos caminhos se cruzaram e hoje faço disso memória. Pessoas que permanecem em mim, ainda que nos detalhes.
Pouco mais de 16 anos já se passaram desde que "virei jornalista". Há tempos, tudo que sou, sei e grande parte dos valores aprendidos na vida passam também de forma intensa pela minha profissão, pela escolha que fiz, antes mesmo dos 15 anos, em mudar o mundo (?) com palavras. Revivo, então, épocas atrás porque a história se faz de lembranças e de peles. Se faz de pessoas e do que elas deixam em outras pessoas.
'São histórias
que a história
qualquer dia
contará'*
Lembro-me de Anderson Sandes, o editor de cultura, ou editor do Caderno 3 do Diário do Nordeste, em minha banca de monografia pedindo gentilmente para eu explicar porque usava o filósofo Todorov como referência. E nossa! Como Anderson sabia usar com cuidado seus verbos. Falava muitas coisas em palavras que soavam devagar naquele dia tão agoniado de uma graduanda. Eu tinha pressa em receber a nota. Anderson tinha calma em falar sobre a minha obra.
Até hoje tenho a minha monografia como um dos mais belos trabalhos que fiz na vida. E Anderson está em parte dele. Assim como também está nos meus primeiros dias de Diário do Nordeste, quando ele falava várias sinceridades sem nem perceber que eu ainda não conseguia formar palavras pra encaixar nas frases que eu queria dizer a um editor de cultura. Me olhava e conversava comigo como se eu não fosse aquela recém-formada. Éramos iguais. Eu com dias de jornal, ele com décadas.
Não tive contato com Anderson por longos tempos, ele nunca foi meu editor. Mas foi um colega que me ensinou várias coisas com palavras e com os silêncios que tinha guardado. Também demos boas risadas juntos. Como é bom relembrar os almoços divertidos no refeitório e os diálogos que tiravam de mim a tensão de ainda ser novata. Não fosse sua partida, hoje estariam essas preciosas recordações no fundo da memória. Compartilho-as, então, porque não creio ser justo tê-las apenas para mim.
No fio condutor da memória da vida, Anderson também me fez lembrar de Tuno Vieira, o Antônio Carlos Vieira de Souza, fotojornalista que também esteve por 30 anos no Diário do Nordeste e que, apesar dos muitos anos dessa travessia rua-redação, também me recebeu com seu sorriso de tantos dentes entre algumas das primeiras pautas para onde saí sem saber quais eram meus rumos no jornalismo.
Aprendizado, sorriso e 'bodejo' de vida
Sair com Tuno era movimento de festa. Tinha aprendizado, tinha "bodejo" sobre a profissão e a vida, e muitas risadas. Nunca fui para pauta com ele sem ver seus dentes acesos de tanto sorrir. E também nunca me senti menos importante por ter a certeza de que, muitas vezes, ele sabia daqueles temas muito mais que eu. “Mulher, tu viu quem passou ali”? Soprava-me quando eu deixava escapar alguém.
Tuno não foi apenas “o fotógrafo da pauta”. Ele era parceiro, um membro da equipe de reportagem que estava na rua. Era um trabalho conjunto. Jamais me senti sozinha com ele por perto. Ele abraçava o mundo inteiro com as lentes de sua câmera e também com sua sabedoria. Um amigo querido com quem dei algumas risadas na mesa cheia de jornalistas, lá pelo bar de Dona Mocinha e em caronas na volta pra casa. “A menina do Bairro Ellery” era como seu sorriso me chamava. Sim, porque Tuno só falava sorrindo. E sorria falando.
Quem também hoje me passa pela memória é a jornalista Déborah Lima, que presidiu o Sindicato dos Jornalistas do Ceará (Sindjorce). Quando eu não entendia quase nada sobre luta por direitos, igualdade e democracia, ela já gritava alto com todas as certezas que eu hoje até conheço sobre a nossa profissão - conflitos e dilemas. Nunca fomos colegas e nem próximas, mas não posso negar a sua participação nas minhas reflexões sobre a valorização da nossa profissão, há tempos atrás.
Débora também se foi há alguns meses, mas deixou em minha memória o seu vivo combate em prol do que acreditamos, ainda que tenhamos dias de desesperança em nosso percurso. Lembrar-me de suas batalhas em defesa do jornalismo e dos jornalistas, em meio a tantas adversidades, também me faz rever e repensar no que ainda acredito. E defendo. E apoio. E quero seguir.
Por fim, Anderson, que deve estar em um belo encontro com os nossos num bom lugar de outros lados da vida, me trouxe o jornalistas Chagas Neto, diagramador com quem também tive rotina próxima quando aprendi a editar o jornal impresso. Neto também já estava há tempos na redação e sabia muito mais que eu sobre grids, colunagem e padrões de edição, por isso eu precisava aprender rápido os jargões e o projeto gráfico pra não ser tão teimosa todos os dias.
Neto se foi, mas permanece nas minhas memórias daqueles fins de noite de espera pela última página do impresso. Ele ainda está ante às recordações dos ajustes de título, foto e textos que não cabiam nem em suas metades nos tamanhos de páginas que ele repetia todos os dias em ajustar nas manchetes de páginas que hoje também não existem mais, mas para sempre guardarão muitas dessas memórias.
Deixo também, em memória, o meu respeito ao jornalista Flávio Torres, que partiu nessa segunda-feira (11), e atuou no Jornal O Estado, na mesma redação onde escrevi minha primeira matéria publicada no impresso.
Aos colegas de profissão que partiram, minhas palavras são a vocês respeito e reverência.
*Trecho da canção de Gonzaguinha, "Pequena Memória Para Um Tempo Sem Memória".