A Glória Maria morreu?! Ouvi essa frase hoje várias vezes na redação, em poucos minutos, entre entonações de interrogação, exclamação e descrença. A sensação que tiveram meus olhos e ouvidos era de uma surpresa que chegava de forma confusa entre nós, jornalistas.
Enquanto isso, dentro de mim, um fogo ardia e logo depois uma ventania gelada se revezavam na boca do meu estômago, como se meu corpo não soubesse ainda como iria reagir, embora meus lábios já tivessem dado algumas respostas e palavras sobre a morte de uma das maiores jornalistas do Brasil, quiçá do mundo.
Jornalista que sou, me vi entre a tarefa de pautar e sentir. Enquanto minha cabeça raciocinava - sobre o assunto do dia, opinando sobre a necessidade de uma discussão coerente, que tentasse expressar um mínimo da imensidão de Glória, - meu estômago e meu coração ainda disputavam a atenção do cérebro ocupado.
Eu fingia plenitude porque às vezes eu esqueço que não há como se dividir entre essas duas tarefas que são tão centrais em minha vida: pautar e sentir. Os verbos que talvez mais façam sentido em mim e que nem sempre conseguem soltar as mãos nessa rotina de corda bamba da vida.
Agitação de redação para pautar a partida de uma personalidade marcante, importante e absolutamente relevante é rotina jornalística. Mas, por que tanto alvoroço dentro de mim com a morte de Glória Maria? É como se muita informação e emoção se amontoassem entre as veias que chegam ao cérebro, ao coração.
É como se tivessem também sido amontoadas as muitas memórias que tenho de Glória em montanhas, praias, templos, pontes, estradas, plantações e céus. Imagens misturadas à figura que segue presa em minha mente da jornalista falando, fazendo passagem em matérias e gesticulando entre tantas paisagens de mundo, desbravando territórios tão bem contados por meio da sua poesia da vida real.
Ao mesmo tempo em que reportava alguns fatos, Glória também fazia história ao ser pioneira em tantos momentos - como a da primeira transmissão ao vivo em cores do Jornal Nacional - mas também por ser imagem-inspiração muito além do jornalismo, um reflexo que se tornou real e tantas vezes considerado impossível a incontáveis mulheres que há 30 ou 40 anos pouco se viam representadas por outras mulheres com o poder de disseminar o poder da sua voz, seu corpo, da sua própria história.
Ligar a TV e ver Glória Maria era abrir os olhos também para as nossas incontáveis potências. Uma verdadeira aliada!
Glória Maria a muitos marcou com as suas palavras. Eu, que desde menina, sou mulher de palavras, quando escuto Glória - e vamos continuar a vê-la e ouví-la - sempre reparo em como ela usa expressões que tantas vezes nem parecem combinar com a cobertura jornalística.
Quem bem assiste - e sente Glória -, percebe o quanto expressões como coração, coragem, alma, emoção, desafio são termos presentes entre seus sorrisos, olhos apertados e respiração ofegante
Escrevo, falo, reflito, rememoro, mas a verdade é que as respostas sobre o que questiono neste texto não cabem em mim, não cabem aqui. Transpassam limites, sejam eles no jornalismo, na televisão, na história de autonomia da mulher, principalmente as negras, na coragem de desafiar modelos, padrões e até territórios.
No poder e coragem de rebater preconceitos, pela voz, pela postura e pela lei. São respostas que não sabemos dar porque ainda sustentamos aquela sensação de susto-surpresa pela partida de quem parecia estar em todos os lugares. Se temos perguntas é porque muito permanece vivo em nós. Que Glória!