A trajetória de Padre Cícero na história e na política do Ceará

Cícero Romão Batista, o padre/herege, o coronel/benfeitor poderia ser facilmente parte da fauna política caótica de 2022, e foi

Quando estava nos primeiros anos do curso de História, encontrei debaixo do travesseiro da minha avó uma foto do Padre Cícero quando menino, joguei a foto fora, foram semanas sem o sorriso e a benção de D. Maria das Dores. Meu prepotente cientificismo juvenil justificava que “aquele coronel” não merecia todo aquele alvoroço. Não entendia à época o quão pouco acadêmico e científico eu fui diante daquele interessante fenômeno.

Minha avó não dormia com o retrato do vovô, nem de nenhum de nós, dormia com alguém que ela não conhecera, mas, por quem ela tinha profunda afeição.

Na transição do século XIX para o XX, a igreja católica romana recebeu notícia de um milagre, a hóstia dada por um padre do sertão brasileiro a uma beata negra e pobre teria se tornado sangue eucarístico. Milagre ou fraude, a crença no sangue derramado passou a reunir cada vez mais curiosos e fiéis.

Sedentos de uma nova realidade, muitos sertanejos buscaram algum sinal de mudança, a migração em massa e a popularidade do padre do lugarejo gerou um confronto entre o milagreiro e o arcebispo, o veredito do Tribunal do Santo Ofício deveria ter posto fim à contenta, nada havia de sobrenatural nos milagres.

A arquidiocese, a beata e o padre, mas, a condenação, no lugar de silenciar o evento, o eleva à parte central da transformação da região em centro de fé e do padre em Santo popular. O Padim Pade Ciço vira uma das personagens mais marcantes da primeira república.

Cícero Romão Batista, o padre/herege, o coronel/benfeitor poderia ser facilmente parte da fauna política caótica de 2022, e foi. O presidente eleito Lula, em visita ao Cariri, se comparou ao Padre Cícero na luta contra os pobres e na perseguição política, o atual presidente Jair Bolsonaro declarou, com uma imagem do padre sobre a cabeça, que era a continuidade da defesa de suas bandeiras, ambos, então candidatos à presidência, buscavam angariar o capital social e político de Romão.

A própria trajetória desses dois líderes de massa, cada um a seu modo, explica a busca pelo padim. Lira Neto, biógrafo do religioso, já destacou o magnetismo pessoal extraordinário do cearense, articulando políticos, grandes proprietários de terra, intelectuais, camponeses, marginais, desvalidos e toda a sorte de gente, o entorno do Padre é lócus privilegiado de estudo e compreensão do Ceará e do Brasil.

Padre Cícero costuma ser visto como o grande líder de Juazeiro do Norte, mas no âmbito religioso, social e político ele transcende o Cariri e deve ser, materialmente, colocado como um dos grandes nomes da política republicana nacional. Sua conexão com as camadas dominantes e inserção nas bases produtivas, contribuiu para a estabilização, investimento e a prosperidade de Juazeiro do Norte.

Ao lado do político Floro Bartolomeu debutou eleitoralmente, foi prefeito, deputado e vice-governador, capitaneou políticas públicas que moldaram toda a região, se correspondeu com os mais relevantes políticos do país e suas cartas indicam uma grande força de articulação.

Em tempos de presidencialismo de coalizão e de aproximação agressiva entre religião e voto, entender as estratégias políticas de Padre Cícero é de grande ajuda na leitura política do país.

Há no padre de Juazeiro do Norte uma proximidade, uma familiaridade, uma esperança de cuidado e salvação não apenas da alma, mas da matéria, como no caso do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, fundado em 1926 no Cariri, sob sua orientação e liderança do beato José Lourenço, importante líder campesino.

O Caldeirão foi uma experiência comunitarista singular e significativa, onde o que se produzia era dividido de forma igualitária, pensado na coletividade, o modo de produção da fazenda era perigoso à ordem vigente. O padre não foi o autor desse projeto, mas sua proteção o fez seguir, logo após sua morte os ataques se intensificaram até a destruição dessa rica experiência campesina.

Finalizo com o que acredito ser um dos mais importantes fatores históricos acerca do Padre Cícero. Não importa a metafísica do milagre, não importa se a foto de menino padre da minha avó era falsa, nem que ele atendesse e acolhesse bandidos, nem que ele fosse grande proprietário rural, como em fenômenos políticos recentes, isso deve ser entendido menos como contradição e mais como resultado de uma realidade social, ampla, complexa e multifacetada.

Esta notável figura, sem buscar um juízo de valor binário e dualista, é o epicentro de uma construção identitária nordestina. Floro Bartolomeu era baiano, José Lourenço era paraibano, Lampião, seu devoto, era pernambucano, milhões de “nortistas” que indo e vindo em torno da figura do ‘padre santo’ transformado em estátua criam uma gente.

Eric Hobsbawm, no seu “A invenção das tradições” demonstra como a repetição de ritos e práticas – as romarias, penitências, ex-votos – servem a formação de uma unidade regional. Em um momento em que tanto se pensa o Nordeste e o Nordestino, historicizar e discutir Padre Cícero é fundamental para entender tanto minha avó e sua a foto do Padim quanto os milhões de romeiros que rumando a Juazeiro movimentam e (re)criam nossa identidade.

Paulo Airton Damasceno é mestre em Ensino de História (UFRN) e professor da rede pública e privada em Fortaleza e Sobral