Usina de dessalinização da Praia do Futuro pode não sair do papel? Entenda impasse com teles

Obra a ser construída em Fortaleza é motivo de entraves entre setor hídrico e de telecomunicações

O avanço do projeto de uma usina de dessalinização na Praia do Futuro esbarra em uma questão antiga: o hub internacional de cabos submarinos nas proximidades do local. O tema voltou à tona nesta segunda-feira (25) em evento em Fortaleza, com a presença do ministro das Comunicações, Juscelino Filho, da Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece), da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e de autoridades cearenses. 

A usina no litoral da capital cearense pertence à Cagece e encontra-se no estágio de Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima). O documento foi finalizado no mês passado e entregue à Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace).

Serão investidos mais de R$ 520 milhões. As obras devem ser iniciadas ainda no primeiro trimestre de 2024, e as operações da usina devem começar em 2026. Em capacidade instalada, o equipamento poderá produzir 1 m³/s, aumentando em 12% a oferta de água e beneficiando 720 mil pessoas na capital.

O impasse, no entanto, não é pela usina de dessalinização, e sim pelo local onde ela será instalada. O equipamento deve ser construído a poucos quarteirões da praia, mas a água que chegará até lá virá bombeada direto do mar. 

Acontece que, bem próximo ao local onde ocorrerá a dessalinização, existem cabos submarinos de empresas de telecomunicações. A infraestrutura já instalada, segundo dados do Ministério das Comunicações, dão conta de que Fortaleza é o segundo maior hub de cabos de fibra óptica do mundo.

Nós vamos acompanhar de perto, para que a gente possa, através justamente do diálogo com todos os atores envolvidos, construir uma solução segura, preservando natural e totalmente esse hub internacional que é ali a chegada dos cabos que representa cerca de 99% do tráfego de dados do nosso país. Vamos estar coordenando, sim, esse debate com todos os atores envolvidos.
Juscelino Filho
Ministro das Comunicações durante visita à Fortaleza

Reclamações antigas

O ministro esteve na capital cearense participando do seminário “Conexões Políticas: a importância dos cabos submarinos”, e evidenciou que está em contato direto com o governador Elmano de Freitas (PT) para resolver a questão da usina, sinalizando positivamente para a instalação do equipamento na Praia do Futuro, desde que não interfira na atuação do hub internacional de cabos.

“Como ministério, vamos buscar dialogar com o governador, em breve, sobre o tema. Acho que é possível sim (a instalação da usina), então é isso que nós vamos buscar e acho que a discussão é justamente em torno da localização ali da usina, é isso que vamos dialogar com o governador, com os atores envolvidos, para que ela seja implantada no local que não deixe nenhuma margem para ter uma possibilidade de impacto nesse hub Internacional de cabos que chegam pelo Ceará”, explicou Juscelino.

Uma das principais reclamações do setor de telecomunicações é de que a usina de dessalinização poderia prejudicar o hub pela trepidação gerada pelo bombeamento da água do mar para o equipamento, provocando instabilidade na transferência de dados da maior parte do Brasil e na internet.

“A qualidade da internet corre um risco muito grande, porque o bombeamento não é com um motor de puxar água em uma casa de dois andares, mas sim com uma bomba que vai puxar 1 m³ por segundo, então isso gera trepidação, com baixa qualidade na transmissão de dados e informações”, ressaltou o deputado federal Danilo Forte (União Brasil-CE).

O parlamentar também esteve presente no seminário desta segunda-feira, e acredita que instalar uma usina de dessalinização na Praia do Futuro poderia causar um alto risco à segurança nacional.

“Temos o principal entroncamento de cabos submarinos, e um dano gerado nessa situação pode corresponder não só a uma ruptura do sistema, como também à desqualificação do serviço, com questionamentos de novas empresas, que podem se dirigir para outras regiões, como Pernambuco e Rio Grande do Norte. Nossa preocupação não é empatar o desenvolvimento do Ceará. Temos que acomodar uma situação em que todos possam ganhar. Questiono muito o risco”, alertou Danilo Forte.

O presidente da Câmara Municipal de Fortaleza, vereador Gardel Rolim (PDT), também participou do evento. O parlamentar enfatizou que todas as obras que ofereçam segurança hídrica à população são importantes, mas ponderou que a Câmara Municipal de Fortaleza não foi consultada sobre a instalação da usina de dessalinização.

“A Câmara Municipal e a Prefeitura de Fortaleza estão promovendo debates, atualmente, sobre o novo Plano Diretor da Cidade. Uma das áreas estratégicas de desenvolvimento urbano é a Praia do Futuro. Onde o projeto da usina se encaixa nisso? Precisamos discutir para ver o que é melhor para a cidade”, disse o presidente.

Ele convidou o presidente da Cagece, Neuri Freitas, para participar de um debate na Casa Legislativa. Os dois ficaram de marcar uma data para a discussão da temática com os demais vereadores.

Convivência “pacífica”

Apesar das reclamações de representantes das telecomunicações, Neuri Freitas chamou de “medo abstrato” a possível interferência da planta de dessalinização no hub de cabos submarinos. Segundo o gestor da companhia, as tecnologias atuais, mais modernas, permitem que haja a mitigação dos riscos.

Particularmente acho que esse medo deles é um medo abstrato, que eles não têm estudos para isso. Percebo que eles estão usando uma reserva de mercado, eles não querem nenhuma outra infraestrutura para a Praia do Futuro, só a deles. À medida que coloco uma planta de dessalinização lá, segundo eles, vai estar tirando espaço para chegar mais cabos, para qualquer outra situação deles, então vejo uma privatização da praia no formato que eles querem. Eles não dizem isso, mas é o sentimento que eu tenho.
Neuri Freitas
Presidente da Cagece

O embate com a Anatel já rendeu sucessivas mudanças na usina de dessalinização por parte da companhia cearense. Conforme o presidente da Cagece, a planta, que antes ficaria a uma distância de cerca de 50 metros dos cabos, agora ficará a pelo menos 500 metros, sem a menor possibilidade de prejudicar as operações do hub.

“Risco no mar não tem nenhum mais, porque estamos a 500 metros. Acho que já não tinha, a uma distância de 50 metros, já não dá para mexer nos cabos, principalmente com as tecnologias existentes e com a engenharia que existe hoje. Mas eles achavam que isso era um risco, nós mudamos, estamos a 500 metros, não dá nem para chegar perto dos cabos deles. Não tem o menor sentido em falar em risco no mar por causa disso”, expôs.

“Hoje, na cidade, já tem água, esgoto e outras instalações subterrâneas, inclusive lá no Data Center, onde os cabos chegam, coletamos e tratamos água e o esgoto deles. Não tem que se falar desse tipo de risco porque o dia a dia é esse para empresas que usam o subsolo, e a nossa instalação já vai ser muito mais profunda do que qualquer outra infraestrutura. São 52 anos de Cagece e nunca quebramos uma fibra óptica, nunca quebramos nada deles, e isso não vai acontecer agora”, completou Neuri.

A planta de dessalinização da Cagece funcionará, segundo o planejamento, como uma espécie de reserva. Caso o abastecimento dos reservatórios de água doce no interior não recebam aporte suficiente para abastecer Fortaleza e Região Metropolitana, a usina será acionada para completar o fornecimento de água potável.

Com o imbróglio entre Anatel e Cagece, os custos da planta ficam ainda mais caros, além de terem o cronograma atrasado. De acordo com Neuri Freitas, a obra era para ter saído do papel há pelo menos um ano e meio, e já ficou entre R$ 35 milhões e 40 milhões mais cara, apenas com o aumento da distância entre a usina e os cabos submarinos.

“Todo mundo diz: 'Ah, por que não bota lá no Pecém?'. Beleza, vou ter que fazer um estudo por mais um ano no Pecém, depois calcular quanto vai ser o custo de trazer essa água para cá em um duto de grande diâmetro, vai aumentar o custo significativamente. Ou 'ah, vamos botar para o outro lado, o lado da Sabiaguaba'. A Sabiaguaba dificilmente a gente vai ter licenciamento ambiental porque é uma área de proteção, mas vamos dizer que liberem. Ainda sim, ia cruzar esses cabos. Estou vendo o setor de telecomunicações muito resistente a ter a usina de dessalinização. Talvez amanhã todo mundo tenha internet, mas não tenha água”, disparou.

Nordeste pode ficar sem internet com interferência

Apesar das justificativas do presidente da Cagece, Eduardo Tude, especialista em telecomunicações e presidente da consultoria Teleco, acredita que a mínima possibilidade de instalação de usina deve ser prejudicial para o hub de cabos, e que caso isso concretize, poderá deixar os nove estados nordestinos até sem internet.

“Pode ter o rompimento dos cabos, porque esses cabos submarinos, quando você os constrói, busca áreas onde reduz a probabilidade de acidentes. Quando você está saindo do mar e vindo para a praia, você aumenta essa probabilidade porque tem barco passando, tem gente. Então, se procura isolar esses locais”, argumenta o especialista.

Se você for fazer uma usina ali, primeiramente, durante as obras, vai ter barco passando ali o tempo todo. Então o risco de acidente é muito alto. E mesmo depois, ela (usina) funcionando, vai ter muito movimento. Esses cabos submarinos têm hoje neles todo o tráfego da região Nordeste, você vai parar a internet aí. O Nordeste pode ficar sem internet. Alguns chegam lá e vão para os Estados Unidos ou vêm para São Paulo. O efeito é muito grande.
Eduardo Tude
Especialista em telecomunicações e presidente da consultoria Teleco

Assim como Danilo Forte e representantes da Anatel, Eduardo Tude defende que a usina de dessalinização seja construída em outro local que não a Praia do Futuro, e considera irrisório o aumento da distância do ponto de captação da água do mar e os cabos submarinos de 50 para 500 metros.

“O reparo de um cabo submarino é um processo muito demorado, porque como ele é colocado no mar, ele não é um cabo de fibra ótica que você vê no poste, ele tem toda uma proteção em volta. Normalmente no mar, vem um navio, leva mais de um mês para consertar. Como está na costa, pode ser menos, mas toda a região vai ficar dias sem internet. É um risco muito grande e quando se escolheu ali para fazer os cabos submarinos, tudo isso foi levado em conta, e se buscou justamente uma região para minimizar esse risco. Na hora que faz essa usina, está aumentando muito esse risco”, analisa.

A preocupação do especialista em telecomunicações é de que os cabos submarinos precisam de infraestrutura restrita para esse tipo de uso, e caso a usina saia do papel, seria o primeiro local do mundo com um hub de cabos e uma planta de dessalinização praticamente vizinhos.

“Isso não é feito em nenhum lugar do mundo. Quando você tem um local desse, com cabos submarinos, tem que evitar esse tipo de coisa. 500 metros é muito pouco. Os barcos vão estar passando ali por cima dos cabos. Não é suficiente. (...) Você tem que prevenir. E se previne na hora do projeto. Depois que construir, vão ficar os acidentes, não vai ter o que fazer”, destaca.

Procurada pela reportagem, a Angola Cables, empresa que administra diversos cabos submarinos na área do hub, informou que não vai se manifestar sobre o assunto.