O Ceará parece finalmente estar expandindo as vantagens competitivas de atração de negócios para além dos incentivos fiscais. Os históricos investimentos em educação e em infraestrutura estão propiciando ao Estado chegar a uma posição de destaque quando o assunto é tecnologia e inovação, com enorme potencial ainda a ser explorado.
O diretor-geral do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) e diretor de Educação e Tecnologia da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Rafael Lucchesi, ressaltou a elevação do nível educacional e a democratização do conhecimento no Estado que, somada à nata cultura empreendedora cearense, deve propiciar um ambiente fértil de inovação e sucesso dos negócios.
Em visita ao Estado para a inaguração do Habitat de Inovação do Senai Ceará, equipamento que promete conectar o conhecimento desenvolvido nos laboratórios com a necessidade do mercado, o economista é o convidado desta semana do Diálogo Econômico.
Na ocasião, Lucchesi comentou como a pandemia acelerou a adoção de tecnologias de automação e explanou sobre como elas foram decisivas na sobrevivência dos negócios durante a crise sanitária.
Ele ainda avaliou a construção do hub de hidrogênio verde no Estado e os avanços socioeconômicos que a atividade pode proporcionar se bem aproveitada e aliada a políticas públicas desenvolvimentistas.
Confira a entrevista completa:
O Ceará tem avançado na inovação e igualado o nível tecnológico à média nacional ou ainda estamos um passo atrás?
Bom, eu sou sempre rigoroso com informação. Então assim, eu desconheço se existem os microdados para dar uma resposta categórica a que você está falando. Agora, vamos pensar por aproximações.
O Ceará tem uma base educacional diferenciada. E não é uma base diferenciada apenas nos seguimentos de mais alta renda como em geral acontece no Brasil. Você tem um sistema muito horizontal de acesso democrático ao conhecimento que são as escolas públicas de referência, de alta qualidade.
E parabéns à história do Estado do Ceará, aos seus governantes que pautaram a agenda de política pública centrada na emancipação das pessoas pelo conhecimento, pelo saber, pela educação.
Então, este tipo de excelência já era conhecida no Ceará, mas era dos extratos menores. Se nós formos fazer uma regressão dos alunos que ingressam no ITA (Instituto Tecnológico da Aeronáutica), a grande maioria deles vem do Ceará, provavelmente eram das escolas de elite antigamente.
E há então um emparelhamento entre a educação que antes era uma educação elitista, como em geral é no Brasil, por um padrão educacional público que está ascendendo muito.
Na sociedade do conhecimento, esse é o principal insumo, tanto pra cidadania como também pra emancipação das pessoas e, é claro, para empreender.
Então, o que a gente vê aqui nesse Habitat de Inovação do Senai é um pouco escrutínio. O Sesi também tem uma grande rede com educação de excelência, a maior rede privada do Brasil, são 526 escolas nas 27 unidades federativas.
Mas o Brasil tem 200 mil escolas. O Sesi tem 257 mil estudantes. O Brasil tem no ensino básico 54 milhões de jovens. Todo o Brasil é muito grande. Aqui no Ceará deve ter um número significativo de escolas.
E esse tipo de projeção nos infere pensar que o Ceará vai estar mandando bem na atitude empreendedora.
Fora isso, e aí eu posso falar também uma outra experiência minha como depoimento pessoal, eu frequento a Federação das Indústrias do Estado do Ceará (Fiec) desde os anos noventa, desde o século passado. E uma coisa que eu sempre via aqui no Ceará é uma atitude muito empreendedora, o que faz até sentido com a história do Ceará, porque é um estado com recursos naturais muito escassos.
Se a gente for pensar em três exemplos: Japão, Coreia do Sul e Israel são territórios também com muito pouco recursos naturais em que a sociedade se convenceu que o único caminho é a educação.
E apostando na educação, no caso do Japão com a revolução meiji, no caso de Israel, no início dos anos 1960, eles perceberam que a agenda de solidariedade sionista não ia bancar um país e eles fizeram uma grande aposta na educação. Idem a Coreia do Sul que fez também esse mesmo movimento.
Então, eu acho que o Ceará, tentando responder a sua pergunta, o Ceará relativamente está construindo de maneira muito sólida um futuro empreendedor baseado na inovação.
E aí temos histórias de icônicas, como a do Expedito Parente, um grande inovador, um cara que bolou e esteve na vanguarda de se pensar o biodiesel e de maneira muito justa o Senai fez uma pequena homenagem ao denominar esse espaço em homenagem a ele.
Mas pensando no futuro, na sociedade do conhecimento, o Ceará tem grandes possibilidades de maneira diferenciada estimular ainda mais a atitude empreendedora que faz parte do Ceará.
O cearense é um empreendedor e em qualquer lugar do mundo que você vai você encontra cearense e ele está lá empreendendo. Então, o cearense é uma espécie de judeu ou chinês brasileiro, está em todo lugar do mundo empreendendo, fazendo negócio.
E é bacana ver a transformação que o Ceará está tendo no sentido de incorporar conhecimento local e permitir as próximas gerações criarem uma sociedade baseada no conhecimento, no empreendedorismo, na inovação.
E o Ceará está acompanhando esse movimento, propiciando uma agenda de apoiar esse espírito livre e empreendedor do cearense de transformar conhecimento em riqueza, não apenas em atitude cultural de empreender, mas instrumentalizando para que o grau de sucesso desse espírito empreendedor cearense seja mais impulsionado pro sucesso.
O Estado tem tentado desenvolver duas atividades interligadas em um novo hub, que são as usinas eólicas offshore e o hidrogênio verde. A possibilidade de receber empreendimentos nesses segmentos gera um fator que impulsiona a inovação?
Ontem, eu assisti uma apresentação feita pelo Jurandir Picanço (consultor de energia da Fiec) brilhante e até brinquei que, pelos números dele, que são reais, o Ceará é uma espécie de Arábia Saudita do hidrogênio verde. E o que é a energia, a matriz energética? É um elemento impulsionador.
A gente pode pensar isso de duas formas: algo que transforme a realidade socioeconômica e se traduza no impulsionamento ainda maior do desenvolvimento territorial, humano e das outras atividades do Ceará, fazendo daqui um grande vale da energia, mas impulsionando atividades do conhecimento, ou apenas exportar energia, que seria a forma mais pobre da conexão de adição de valor.
Claro que as duas coisas vão funcionar, porque existe um superávit absurdo de energia, um potencial absurdo que o Ceará tem frente às suas necessidades. Mas claro que as necessidades são dinâmicas. Se você desenvolver mais o território, você vai ter um maior uso de energia.
Então, acho que se pode fazer um mix das duas coisas e isso dependeria de uma visão estratégica de desenvolvimento territorial do Ceará que, pela história do Estado, pela liderança que a Federação tem e até o protagonismo de estar liderando essa reflexão, acho que vai haver esses dois caminhos: o impulsionamento do desenvolvimento de várias outras atividades, porque a matriz energética é transversal, alimenta todos os setores econômicos, seja da agricultura, seja da indústria, seja da atividade de serviços, e também um grande hub de conexão com a economia mundial.
O Ceará reúne outra vantagem competitiva muito grande que é o Porto do Pecém, que tem uma articulação intrínseca com o Porto de Roterdã que, junto com o Porto de Singapura, são as melhores práticas portuárias do mundo. Então, o próprio excedente econômico gerado por essa atividade econômica de exportação de energia pode ser um elemento financiador do desenvolvimento territorial.
Em termos de Indústria 4.0, como esse processo foi afetado pela pandemia e como o Ceará se enquadra nesse cenário de desenvolvimento?
A pandemia foi uma grande tragédia humana e econômica e os setores que foram mais sacrificados foram os setores menos intensivos em tecnologia. Então, claro que o efeito que você tem disso é de concentração inerente aos processos de destruição econômica por crises.
Essa é uma crise sanitária, mas teve um impacto, porque impactou na mobilidade das pessoas e, claro, os circuitos econômicos foram destruídos ou fragmentados ou esvaziados ao longo desse processo.
Então, houve um acelerador de tendências até natural pelo processo de concentração econômica decorrente da crise que as empresas que eram menos sensíveis, por serem mais tecnológicas, à questão do fluxo de pessoas foram as empresas que venceram, foram as menos impactadas.
De uma maneira geral, o Ceará tem uma vantagem interessante por conta desse histórico de empreender, porque você tem muitos grupos empresariais nativos daqui que cresceram. Então, essa atmosfera emrpeendedora cria exemplos, cria ícones que são os principais grupos econômicos, que eu não vou me atrever a citar porque vou esquecer de algum, mas você tem os grandes grupos econômicos daqui.
Vou dar só um exemplo: o Moinho Dias Branco. É um grupo empresarial forte, robusto que é daqui e isso é relevante. São grupos que estão se nacionalizando e que o fato dos empreendedores serem daqui os tornam os protagonistas da incorporação dessas novas tecnologias e para esse ambiente fértil.
O Brasil nem sempre tem em todos os territórios brasileiros essa dinâmica de ter empreendedores muito bem sucedidos nas suas áreas de atuação. Então, isso certamente é uma vantagem competitiva, dinâmica, estratégica para se pensar o desenvolvimento econômico do estado do Ceará, das empresas que estão no estado do Ceará para abrigarem mais rapidamente os fatores da indústria 4.0.
Então, essa mentorização que certamente esses grupos vão fazer vão dar novas vantagens competitivas para o futuro e eu acho que a indústria cearense, a revolução da indústria 4.0, das tecnologias, elas vão se difundir para todos os setores.
Mas dois terços desses esforços hoje são liderados pela indústria do mundo. Então, o grosso desse processo vai se dar a partir da indústria brasileira e, particularmente, da cearense. E aí no meu modo de vermos que o Ceará está bem posicionado.
Você falou de vantagens, e a análise de dados tem se mostrado mais recentemente um grande diferencial. Aqui no Ceará nós temos o Observatório da Indústria ligado à Fiec que realiza pesquisas e análises de mercado. Você acredita que trabalhos como esse são determinantes para o desenvolvimento mais rápido e mais eficaz?
Olha, como professor de economia, a informação é um elemento-chave para o sucesso econômico em qualquer ambiente concorrencial. Isso está nos manuais de economia dos anos 1970, dos anos 1980, dos anos 1990. Só pra você ter uma ideia de como a informação é importante, o que que é a quarta revolução?
A terceira revolução industrial criou a microeletrônica, ou seja, o chip e a telecomunicação. São as duas tecnologias que foram impulsionadas pelo projeto Apollo.
O objetivo não era botar o homem na lua, o objetivo era dar liderança para as empresas norte-americanas dessas duas tecnologias que transformaram o mundo.
O que aconteceu? Houve a difusão do chip, que hoje está em todo lugar. O preço do automóvel até os anos 1970, por exemplo, era sobre a quantidade de aço que havia no automóvel. Hoje, o preço do automóvel é função da tecnologia embarcada.
Sabe quantos chips tem no automóvel hoje, em média? Entre 3,5 mil e 4 mil componentes eletrônicos. Tudo que você pensar hoje no carro tem comandos eletrônicos, até na manutenção. Se você for fazer revisão, o cara vai espetar um laptop e vai fazer todo o diagnóstico do carro.
Como está tudo com microeletrônico embarcado, então tudo fala com tudo, aí se criou o conceito da internet das coisas. Então, como tudo conversa com tudo, o robô conversa com o produto que está passando na esteira, você tem uma camada muito maior de informação: 100 vezes mais. É o big data.
Então, esse tipo de dimensão joga que no chão de fábrica você tem 100 vezes mais informação. Então, é claro que o sistema de informação de um Observatório, nesse tipo de nova economia onde o valor adicional está baseado em informação, é decisivo para o maior sucesso da agenda de política pública, da estrutura de desenvolvimento do conhecimento, das instituições que fazem a ciência e a inovação, e temos também o sucesso dos empreendedores.
Se você tem uma base de informação maior, pollíticas públicas mais eficazes, a inovação na veia aonde você minera dados e você mais rapidamente consegue conectar a patente que foi desenvolvida em Israel ou no Japão ou no Paquistão, ou as novas tendências de mercado, ou o preço, tudo isso gera uma plataforma muito útil de informação.
Por exemplo, a Fiec desenvolveu um sistema de monitoramento de toda a base informacional do Atlas Solar e Eólico do Estado do Ceará. O que você para empreender na Bahia ou no Rio Grande do Norte ou no Maranhão, que estão aqui do lado, demoraria meses de monitoramento, com um custo de investimento para avaliar tudo isso, você tem no V0, no primeiro dia.
A informação está dada, inclusive com cálculo georeferenciado sobre o retorno econômico de cada posição. Então, você só precisa tomar a decisão de investimento.
Esse é apenas um pequeno exemplo pontual de como o tratamento da informação se constitui em uma vantagem competitiva real para atração de investimentos, que é a variável dinâmica do sistema econômico.
É o investimento que vai gerar emprego, renda, que vai gerar mais lucro, que vai gerar mais investimento e com isso você cria um círculo virtuoso de desenvolvimento a partir de toda essa energia baseada em informação que o Observatório no lugar certo, liderado pela Fiec, pode impulsionar a economia cearense.
Quais os gargalhos que ainda precisam ser transpassados para que o nível de inovação do Brasil e do Ceará se iguale ao restante do mundo?
Nós precisamos ter regras automáticas de incentivos fiscais para inovação que abranjam todas as empresas. O marco legal brasileiro limita as regras de estímulo fiscal, primeiro que elas são pequenas, mas elas também abrangem um pequeno grupo de empresas, que são aquelas que declaram por lucro real.
Isso é 6% das empresas, a maioria deles de multinacionais, que vão fazer seus esforços de P&D nos seus países de origem, não vão fazer no Brasil.
E aí você elimina boa parte das empresas por uma limitação da Receita, que poderia sim ter uma regra automática para as empresas de lucro presumido.
Como é a inovação de pequenas e micro empresas no mundo? 30% do bolo de inovação. Isso a gente joga fora por uma limitação operacional da Receita, o que é um erro.
Então, ter uma política pública mais voltada à inovação, com maior energia e com redução do risco jurídico, da burocracia do Estado que limita e atrapalha a inovação, seguramente é uma agenda de Brasil.
A gente tem que desenhar uma agenda mais voltada para aqueles segmentos em que o Brasil apresenta vantagens competitivas. Quando a gente olha pro Ceará, há um conjunto de setores que a própria história demonstra que o Ceará, e o Brasil quando se fala de País, tem vatagens competitivas.
Que tipo de política nós fazemos pra impulsionar essas atividades, sobretudo as atividades industriais de maior valor agregado, de alta e média-alta tecnologia? Que ação de política industrial nós temos?
No Brasil, nós temos um problema que todas as políticas públicas do período recente se subordinam à política macroeconômica, que só é voltada pra estabilização. Só que isso é um equívoco.
A macroeconomia é importante? Claro! É um pré-requisito de estabilidade econômica. Mas nem tudo precisa convergir pra ela, até porque ela não é neutra. Nós devemos colocar no mesmo patamar uma política industrial, de tecnologia e inovação, e de comércio exterior.
Então, ao equilibrar essas políticas nós teríamos um projeto de País mais voltado para a geração de riqueza, o que seria muito interessante, muito importante para o Brasil.