Dados de janeiro de 2024 indicam que Fortaleza é a terceira cidade do Brasil em número de famílias beneficiadas pelo Programa Bolsa Família, atrás apenas de São Paulo e Rio de Janeiro. Ao todo, são 347.408 núcleos familiares que recebem o benefício.
Os números são da plataforma da Secretaria de Avaliação, Gestão da Informação e Cadastro Único (Sagicad), do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome e atualizados mensalmente, contabilizando novas adesões e saídas de beneficiários do Bolsa Família.
Na série histórica do Sagicad, que considera as variações nos últimos seis meses, setembro de 2023 registrou o maior número de famílias que recebiam o benefício: 357.563. O mês com o menor índice foi o mês anterior, agosto, com 343.709 núcleos familiares contemplados com o programa.
Em outubro de 2023, o Bolsa Família completou 20 anos de existência, reunindo uma série de outros benefícios anteriormente concedidos para os brasileiros, como o Bolsa-Escola e o Auxílio-Gás.
Nesse período, Fortaleza vivenciou um grande crescimento, deixando para trás Recife e Salvador e se tornando a capital do Nordeste com a maior população e o maior Produto Interno Bruto (PIB), dados comprovados pelo Censo Demográfico de 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Atualmente, a capital cearense tem pouco mais de 2,42 milhões de habitantes, e fica atrás apenas de São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília dentre as cidades com maior população do Brasil.
Para especialistas ouvidos pelo Diário do Nordeste, está nítida a relação entre o grande número de pessoas em Fortaleza com o número de beneficiários pelo Bolsa Família, mas os dados também acendem um alerta para os ainda persistentes baixos indicadores socioeconômicos e a desigualdade social.
Raízes para o programa
Os números do Bolsa Família em Fortaleza estão relacionados também à necessidade de acesso, por boa parte da população, a recursos básicos, como alimentação. É o que destaca Vitor Hugo Miro, professor do departamento de Economia Agrícola da Universidade Federal do Ceará (UFC).
"Fortaleza é uma grande cidade do Nordeste, que tem índices de pobreza bem mais elevados do que o restante do País, possui um alto contingente de população em situação de extrema pobreza. O Ceará, apesar de ter avançado nos últimos anos, ainda é um dos estados com o maior contingente de pessoas em situação de pobreza, considerando a pobreza monetária, pensando em fatores relacionados basicamente a renda", classifica.
Para o professor da UFC, "o fato de Fortaleza ser a terceira em maior número de beneficiários está simplesmente refletindo um aspecto populacional" que também é tendência em todo o Ceará.
De acordo com dados do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, até janeiro deste ano, o Ceará tinha 3.826.695 pessoas que recebiam Bolsa Família, número que corresponde a 43,5% da população do Estado.
Renda desproporcional
O alto contingente de beneficiados pelo programa também impacta nos indicadores, como afirma o professor João Mário de França, da Pós-Graduação em Economia da UFC (Caen/UFC), apontando os dados divulgados na Síntese de Indicadores Sociais do IBGE de 2022, nos quais constata-se que 80% da população cearense vive com até um salário mínimo por mês.
"Se por um lado mostra um nível preocupante de famílias com forte vulnerabilidade social, por outro, praticamente todo esse recurso monetário transferido para essas famílias de baixa renda se transforma em consumo, dinamizando os setores de comércio e serviços para esse perfil de renda. Essa demanda dessas famílias, que não existiria sem o Bolsa Família e outros importantes programas de transferência de renda estadual, pode potencializar aumento de emprego e geração de renda", analisa.
O diretor da FGV Social, Marcelo Neri, também explica que o retorno causado pelo investimento com o Bolsa Família faz a economia de cidades como Fortaleza e outros municípios do Nordeste compensar a transferência de renda.
"A própria economia local sofreria com a retirada desses benefícios, que têm um efeito multiplicador. A gente tem uma estimativa que cada real que você gasta com o Bolsa Família tem um impacto de R$ 1,78 no PIB. Enquanto o BPC, outro programa de combate à pobreza, tem R$ 1,19 para cada real. O Bolsa Família não só ajuda no combate à pobreza, aliviar os direitos fundamentais — alimentação e subsistência — como também ajuda a economia", diz.
Combate à desigualdade
O diretor da FGV Social faz um contraponto que evidencia a desigualdade de Fortaleza. Enquanto a capital cearense é destaque nacional no quesito de microcrédito e na educação básica, ainda é bastante dependente do Bolsa Família.
"Se pegar todas as capitais brasileiras, a desigualdade de renda em Fortaleza é a segunda do Brasil, só perde para João Pessoa. A desigualdade seria ainda maior se não houvesse o Bolsa Família. É um grande efeito para um modesto custo, não que seja desprezível, o que é surpreendente. Fortaleza é uma meca do microcrédito nacional, tem uma educação fora da curva positivamente em todo o País, mas o fato é que se você tirar o Bolsa Família, a situação seria pior do que é", observa.
Ao longo de 20 anos, Marcelo Neri também enfatiza que o efeito do programa evitou que houvesse uma maior expansão do índice de pobreza no Brasil. Criado para ser um programa transitório, o Bolsa Família se tornou política permanente, com mais desafios para os indicadores.
O Bolsa Família acabou de aumentar de para 1,5% do PIB, então mostra que não só ele veio para ficar, como hoje em dia ele é maior do que era em termos reais. Acho que tem se mostrado que o programa atinge a população mais pobre, é relativamente eficiente e que ajuda diretamente no combate à pobreza. A taxa de pobreza extrema, pela FGV, é de 9,6% da população. Sem o Bolsa Família, iria para 14%. Os estudos têm demonstrado é que o programa não só presta um serviço para a população pobre, como também ajuda a fazer as rodas da economia girarem.
Prognósticos para o futuro
O professor João Mário de França traça um panorama do Bolsa Família e os desafios que ainda persistem com o programa. A iniciativa ampliou o leque do combate à pobreza para um olhar que vai além da renda, mas não foi efetivo em fornecer uma saída para a maioria das pessoas que dependem do benefício.
"Transferiu-se renda para uma condição mínima, mas fizeram-se exigências de condicionalidades que as famílias devem cumprir, ajudando a combater não apenas a pobreza monetária baseada na renda, mas uma pobreza mais ampla que denominamos como pobreza multidimensional. Obviamente, não corrige todos os problemas, mas é um programa que permite avanços bastante consideráveis", declara.
"O Bolsa Família tem que ter em seu desenho uma porta de saída. Para que isso aconteça, a gente precisa prover para essas famílias renda por outras fontes, principalmente pelo trabalho. Durante todo o período do programa, nunca tivemos um crescimento que fosse muito inclusivo em termos de permitir que as famílias mais vulneráveis deixassem de depender do Bolsa Família", completa João Mário.
Em um curto prazo, a expectativa de Vitor Hugo Miro é de que a quantidade de pessoas beneficiadas pelo Bolsa Família continue em patamares altos, como acontece nas principais capitais do Brasil, a exemplo de Fortaleza. Para os próximos anos, os efeitos do programa devem ficar ainda mais visíveis pela chegada ao mercado de trabalho de gerações que nasceram já recebem o auxílio.
"Às vezes a gente vê resultados de redução de pobreza, mas muito dessa redução de pobreza pode ser pelo programa, por via de transferências e não necessariamente por crescimento econômico. Esses 20 anos do Bolsa Família vão ser um marco interessante porque já vamos ter uma geração criada sob a tutela dele, que acessou seus benefícios e a gente vai ver como essa geração está chegando agora no mercado de trabalho. Se as crianças que 20 anos atrás começaram a receber o programa, agora estão chegando ou com mais escolaridade, ou com melhores condições para atuar no mercado de trabalho", projeta o professor de Economia Agrícola da UFC.