A desigualdade social é um dos traços mais fortes da sociedade brasileira. E com a pandemia, o País reforçou seu “casamento perverso com a pobreza”, como ilustra o economista Ricardo Eleutério Rocha. A classe média está encolhendo e o contingente de pobres se avoluma.
O baque econômico decorrente de cortes de empregos e do fechamento de empresas afetadas pelas medidas — necessárias — de cuidados sanitários traz consigo o aprofundamento dessa desigualdade, avaliam especialistas consultados pela reportagem.
Só nos quatro primeiros meses deste ano, 11.654 empresas foram encerradas no Estado, quase metade (42%) dos fechamentos de todo o ano passado (27.472), conforme dados da Junta Comercial do Estado do Ceará (Jucec).
Na passagem de 2019 para 2020, o número de desempregados disparou 29,7% no Ceará, passando de 423 mil no quarto trimestre de 2019 para 549 mil nos últimos três meses de 2020, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad).
A massa de rendimento real de todos os trabalhos efetivamente recebidos mensalmente por cearenses ocupados despencou 20,9%, caindo de R$ 6,5 bilhões no último trimestre de 2019 para R$ 5,2 bilhões em igual período de 2020.
No mesmo intervalo de comparação, a renda média mensal do trabalho de cearenses ocupados caiu de R$ 1.776 para R$ 1.656, um recuo de 6,7%. A redução de renda da classe média e o crescente desemprego têm conduzido essa fatia da população à pobreza.
"É possível observar a redução da classe média e o aumento tanto da pobreza quanto da extrema pobreza, os mais vulneráveis da faixa da população brasileira, e isso tem aumentado", aponta o professor do Programa de Pós-Graduação em Economia Rural da Universidade Federal do Ceará (UFC), Francisco José Tabosa.
Agravamento pela pandemia
O professor do doutorado em Economia Rural da UFC, Jair Andrade, explica que os indicadores de pobreza já vinham aumentando antes da pandemia, resultado de um crescimento econômico “pífio” no País - o Produto Interno Bruto (PIB) nacional avançou 1,1% em 2019 -, e foram acentuados após o início do enfrentamento da Covid-19.
“A gente já observava o aumento de pobreza e extrema pobreza, por duas razões, principalmente. A primeira é mercado de trabalho, as famílias perderam renda. E um segundo momento, o que vejo é uma diminuição das políticas públicas desse governo atual para atender pessoas pobres e extremamente pobres. Você tem uma redução desses programas e isso afeta, obviamente, a classe mais pobre”
O cenário, segundo Andrade, vem sendo construído desde a crise política e econômica desenrolada entre 2015 e 2016, visão endossada pelo economista José Tabosa. Ele destaca que a economia estagnou nos últimos anos e a classe média foi diretamente atingida com os prejuízos acumulados por empresários após a pandemia.
“Antes mesmo de chegar na pandemia, a economia já não estava crescendo. Isso é um fator que influencia bastante no crescimento da renda das famílias. A classe média foi muito atingida pelo desemprego também por questão de muitos serem empresários, empreendedores individuais, e boa parte desse segmento foi prejudicado pela pandemia”, diz o professor Tabosa.
Ele cita, ainda, o impacto da Reforma da Previdência sobre os rendimentos da população. “Se for um servidor público, aumentou a alíquota (de contribuição), passando de 11% para 14%. Associado a tudo isso, tem mais uma perda de renda. E o tempo para aposentadoria também, que afeta a curto e longo prazo".
Futuro comprometido
O quadro é potencialmente desafiador para o futuro, agravando condições de acesso à saúde, educação e itens básicos de sobrevivência, como o próprio alimento, além da entrada e permanência no mercado de trabalho, diz o professor da Universidade de Fortaleza e conselheiro do Conselho Regional de Economia do Ceará (Corecon-CE), Ricardo Eleutério Rocha.
“Nós temos desigualdade funcional de renda, entre capital e trabalho. As remunerações do capital, juros, lucros e aluguéis representam a maior fração da renda nacional, enquanto os salários representam a fração menor", detalha.
O conselheiro do Corecon-CE aponta a responsabilidade do setor público de implementar políticas de inclusão e afirmação para mitigar os efeitos da crise que aprofundaram a desigualdade. “Esse papel é extremamente importante”, ressalta.