O que é o imposto do pecado e como a alíquota extra pode impactar os preços dos produtos?

Materiais que são prejudiciais à saúde e ao meio ambiente terão alíquota extra como forma de desestimular o consumo

Promulgada no último dia 20 de dezembro, a Reforma Tributária trouxe, além do chamado Imposto Sobre Valor Agregado (IVA), um novo encargo: o Imposto Seletivo (IS). O também chamado “imposto de pecado” passa a vigorar com o início da transição para o novo esquema, mas segue gerando dúvidas acerca da funcionalidade.

Com o novo esquema tributário no Brasil, todos os cinco impostos obrigatórios que incidem sobre bens e serviços (IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS) serão agrupados em apenas dois, no chamado IVA dual: CBS (de competência federal, substituindo IPI, PIS e Cofins) e IBS (de competência estadual e municipal, no lugar de ICMS e ISS). Além disso, passa a incidir o IS, também sob domínio da União, a exemplo do que já acontece em diversos países.

A nova alíquota será utilizada em “produtos e serviços prejudiciais à saúde, como bebidas e cigarros, e à 'sustentabilidade ambiental e redução das emissões de carbono'”.

Armas e munições também seriam incluídas no IS, mas em uma votação dos destaques antes do 2º turno da votação na Câmara, os deputados retiraram da pauta o trecho da lei que trata sobre esses materiais. Com isso, os equipamentos balísticos permanecem de fora da tributação extra.

O texto promulgado aponta ainda que o IS será cobrado em uma única fase da cadeia produtiva, como ocorrerá com o IVA dual. As exceções do segmento de bens e serviços que estão de fora dessa tributação, além de bens chamados “essenciais”, são as exportações, operações com energia elétrica e telecomunicações.

Assim como todo o texto da Reforma Tributária, o IS tem a expectativa de início de transição em 2027, quando absorverá as funções hoje atribuídas ao IPI. A partir de 2033, o antigo encargo deixa de existir, com cobrança integral do Imposto Seletivo.

Não está definido ainda quanto será a cobrança do IS, nem oficialmente em cima de quais produtos ele irá incidir. Isso será definido através de lei complementar, que ainda não tem previsão de ser elaborada. Na prática, ela coloca para funcionar de fato a Reforma Tributária, detalhando numericamente as alíquotas e os demais pontos do texto constitucional.

Especialistas ouvidos pelo Diário do Nordeste celebram a criação do IS, que deve corrigir distorções atualmente existentes no IPI, mas pedem cautela acerca da alíquota a ser cobrada com a finalidade de evitar situações como contrabando.

DESESTÍMULOS JÁ PREVISTOS

O IS, na prática, não se trata de um novo tributo. Embora a nomenclatura e a lei indiquem que se tratará de uma nova alíquota, o encargo absorve o que já vem sendo cobrado pelo IPI, o Imposto sobre Produtos Industrializados. Há anos, produtos considerados prejudiciais à saúde pagam grandes taxas como forma de desincentivar o consumo. 

O cigarro, na tabela disponibilizada pela Receita Federal, paga 300% de IPI. O material, ao longo dos anos, teve as alíquotas aumentadas sucessivas vezes, assim como cervejas e demais bebidas alcoólicas, cuja tributação tem especificações distintas por se tratarem de diferentes produtos.

A substituição tende a ser benéfica do ponto de vista tributário, como pondera Gustavo Fossati, professor da FGV Direito Rio. Além do fim do ICMS, definido pelo docente como “altamente problemático, que tem que ser extinto”, o IPI tem questões que prejudicam o seu entendimento, distorção que deve ser corrigida com o IS.

“O IPI, em que pese seja um imposto federal, não é um imposto santo, já gerou um contencioso muito elevado. Se a gente considerar, com relação a essas métricas de complexidade e de contencioso que geram elevados custos de transação, a substituição do IPI pelo Imposto Seletivo é muito boa em termos gerais. Alguns malefícios serão inerentes à própria estrutura do imposto. É um preço que a gente paga por ter um imposto desse formato”, conclui.

Isso também é destacado pelo advogado e sócio da R. Amaral Advogados, Gustavo Bevilaqua, que pontua que o IS vai promover uma “uniformidade nacional” em torno do imposto seletivo atualmente não existente com o IPI.

“O fato é que essa arrecadação dos estados já vai estar contida no IBS, de maneira que o IS vai ser um incremento de arrecadação. Ele é para ser excepcionalíssimo em coisas que realmente façam sentido uma cobrança adicional, porque, de modo geral, o CBS e o IBS vão conter o que já é cobrado de modo ordinário”, explicita.

Com a substituição entre os impostos, a expectativa é de que o IS agora tenha normas mais claras e diretas sobre onde vai incidir em detrimento do atual esquema do IPI. É o que salienta Hamilton Sobreira, presidente da Comissão de Direito Tributário da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-CE).

“Os bens supérfluos terão uma carga tributária maior do que os bens essenciais. A diferença é que, segundo a emenda constitucional, o IS tem um rol estrito do que deve ser tributado através do imposto seletivo”, resume o especialista.

Embora o cenário apresente-se positivo, contudo, o coordenador da área de tributos federais da OAB-CE, Sylvester Firmeza, acredita haver muitas imprecisões acerca da cobrança do IS, sobretudo por não estarem explícitos que produtos serão taxados.

“O IS aprovado se assemelha ao IPI e ao ICMS no aspecto do desestímulo ao consumo de determinados produtos ou comportamentos e tem o benefício de uma aparente simplificação. Porém, como não se sabe quais produtos e serviços serão considerados prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, além do percentual da alíquota, existe o risco inerente a indefinição dos conceitos”, argumenta.

O 'X' DA QUESTÃO…

Como o funcionamento de fato do IS ficou para lei complementar, as múltiplas interpretações incluem hoje produtos fora do rol especulado do imposto seletivo, e contemplam inclusive materiais de outras naturezas, que ou são prejudiciais à saúde, ou são nocivos ao meio ambiente.

Gustavo Bevilaqua infere que o teor da lei deixa atualmente o IS como uma “incógnita”: “Realmente a lei complementar é quem vai trazer de forma mais minuciosa como vai se dar a cobrança desse imposto seletivo. A emenda aprovada foi muito genérica nesse aspecto”.

Sem a lei complementar, que não tem previsão para ser elaborada — e votada —, muito menos sem um esboço da lista de produtos que terão cobrança do IS, a lista de produtos prejudiciais abre margem para múltiplas interpretações.

Hamilton Sobreira defende que isso inclui materiais como plástico, presente em diversos bens comercializados, sejam eles essenciais ou não. De acordo com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o produto pode levar pelo menos 450 anos para se decompor no meio ambiente, com alto grau de poluição.

A grande dificuldade vai ser saber quais produtos são danosos para o ambiente. Isso vai ficar para uma regulamentação posterior à emenda constitucional, através de lei complementar ou de outras normas. Um exemplo: plástico é danoso ao meio ambiente? Certo, então o plástico utilizado para uma seringa, que é da área da saúde, será tributado ou não?
Hamilton Sobreira
Presidente da Comissão de Direito Tributário da OAB-CE

Essa consideração é corroborada por Gustavo Fossati, que também salienta que a radiação emitida por celulares e smartphones podem levar ao desenvolvimento de doenças como diferentes tipos de câncer, além do longo período de exposição após o descarte do material demorar para se decompor na natureza.

Quando a gente prioriza proteção à saúde, principalmente a saúde pública e todos os custos envolvidos, a depender do caso, a gente está fazendo isso em detrimento de interesses pessoais dos consumidores. Então exemplo: você troca periodicamente de celular, eventualmente ele pode vir a ser enquadrado, porque não como prejudicial à saúde, mas ao meio ambiente, porque de fato ele é, só que as pessoas não se deram conta disso ainda. Em confirmando essa hipótese, a tributação vai ser levada, obviamente, em detrimento do consumidor.
Gustavo Fossati
Professor da FGV Direito Rio

Além de plástico e celulares, o docente da FGV também inclui outros produtos, como alimentos ultraprocessados e bebidas com alto teor de açúcar que, a depender do disposto na lei, podem ser inseridas na lei complementar do IS.

“Esse consumidor que gosta de trocar o seu celular todo ano vai pagar mais por ele, e é assim também com uma série de alimentos que são prejudiciais à saúde, por exemplo, como os que aumentam o colesterol, com alto teor de açúcares, são evidentemente prejudiciais à saúde, a gente sabe, eles terão agravados o seu preço final ao consumidor”, reflete.

… O 'Y' DO PROBLEMA

Paralelo às considerações de múltiplas interpretações acerca sobre quais produtos serão afetados pelo IS, há ainda outra questão trazida pelos especialistas: quanto maior a alíquota, maiores são as chances da sociedade encontrar formas de evitar o pagamento desse imposto.

“Quando a gente estica demais a tributação, a sociedade começa a se sentir mais incentivada a buscar maneiras menos onerosas para fazer as transações econômicas. Em uma eventualidade de o IS vir tratar de maneira muito onerosa as operações, pode ser que os contribuintes venham a se sentir incentivados a buscar operações à margem do sistema à medida que o risco passa a valer à pena”, alerta Gustavo Bevilaqua.

Hamilton Sobreira orienta que é preciso um aparato mais intenso do Estado a depender do imposto que será cobrado: “O que tem que ser praticado é a fiscalização para inibir o descaminho, que é a importação de produtos que tende a fraudar o recolhimento de tributos”.

Toda essa análise está amparada no conceito de Curva de Laffer. A teoria econômica, nascida nos anos 1970 nos Estados Unidos, é representada por uma parábola. A tributação, seja ela mais ou menos onerosa, deve tentar seguir um equilíbrio, representado pelo ápice da curva. É neste ponto onde os impostos são maximizados, mantendo os bons índices da atividade econômica.

No caso do IS, a preocupação ressaltada por Gustavo Fossati está em um dos pontos baixos da parábola, principalmente em caso de alta tributação. Em exemplificação clara, ele traz como vitrine o cigarro, produto de elevada carga de impostos no Brasil a partir do IPI, e que enfrenta o problema crescente do contrabando.

“Você pode ir aumentando a alíquota pra aumentar a arrecadação por óbvio, mas vai chegar um determinado ponto do gráfico que você não vai poder elevar mais ainda essa alíquota porque na prática você está dando um tiro no próprio pé, ou seja, as pessoas vão embora do País, fechar os seus negócios, vão deixar de empreender no território nacional, vão trabalhar na economia informal, vão começar a vender sem nota fiscal, vão contrabandear esses produtos. Isso é uma preocupação mais do que real e que deve ficar no radar do poder público com relação a esse dimensionamento da alíquota do IS”, avalia.

"Há alguns estudos que comprovam que essa problemática do cigarro não é propriamente o agravamento dos custos de saúde pública, mas sim o agravamento dos custos envolvidos com investigações criminais, combate ao contrabando, ou seja, todo custo que é incorrido tanto pelo aparato da polícia, como pelo aparato do Ministério Público, e são custos elevadíssimos que superam até mesmo os custos da saúde pública no combate aos malefícios provocados pelo cigarro", concluiu.