Em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por unanimidade, autorizar transexuais e transgêneros a alterarem nome e gênero no registro civil, mesmo sem a realização de cirurgia de readequação genital. Hoje, o reconhecimento se dá apenas pela autodeclaração, mas a burocracia e as taxas de cartório têm desmotivado muitas dessas pessoas a buscar a retificação.
Foi o caso da mulher trans Luana Morais, de 20 anos, que morreu após ser atingida com um tiro no pescoço no bairro Campo Alegre, em Juazeiro do Norte, no último dia 26 de abril. Devido à falta de documentos, inclusive, houve impedimento na liberação do corpo da jovem no Instituto Médico Legal (IML) do município.
O procedimento de liberação aconteceu somente após a família da vítima receber auxílio da Defensoria Pública do Estado do Ceará (DPCE), bem como da Associação de Defesa, Apoio e Cidadania dos Homossexuais do Crato (Adacho).
Fundador e presidente de honra da Associação, André Lacerda endossa que Luana não possuía nenhum documento com o seu nome social. Isso, acrescenta, ainda é um “grande problema” na região do Cariri, tendo em vista que a maioria da população trans não tem recursos para pagar a retificação e ainda esbarra na burocracia. “É muito complicado. Sai muito caro pra elas que não têm condições, oportunidades”.
Retificação gratuita em até dois meses
Mas o que fazer quando não é possível arcar com as taxas cobradas pelo cartório?
No Ceará, a retificação do nome e de gênero de transexuais e travestis pode ser solicitada gratuitamente, por meio do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas (NDHAC), da Defensoria Pública do Estado (DPCE).
Cabe ressaltar que o serviço é voltado somente para quem não tem condições financeiras para custear as taxas cobradas pelos cartórios e que atestem hipossuficiência econômica. Por isso, em alguns casos, podem ser solicitados comprovante de renda e/ou carteira de trabalho.
A supervisora do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas da DPCE, defensora Mariana Lobo, detalha que os procedimentos de retificação são céleres e finalizados pelo NDHAC em até dois meses após a solicitação. “Em média, a gente demora de 45 dias até 60 dias, no máximo, para conseguir isso”, estima.
A Defensoria Pública acompanha todo o procedimento de retificação e representa a pessoa interessada administrativamente, encaminhando-a, mediante ofício, ao cartório onde foi registrada.
“Lá, ela dá entrada no procedimento que vai retificar o prenome e gênero. Embora alguns cartórios ainda tenham resistência em fazer retificação de forma gratuita, este é um direito assegurado e a Defensoria tem buscado auxiliar todos que nos procuram”, garante a defensora pública.
Devido à pandemia de Covid-19, os atendimentos no Núcleo estão ocorrendo preferencialmente de forma remota, por meio dos números de WhatsApp (85) 98895-5514 e (85) 98873-9535. Ou pelo e-mail: ndhac@defensoria.ce.def.br.
Confira abaixo a lista de documentos necessários para entrar com procedimento de retificação pelo NDHAC:
- Certidão de nascimento atualizada; (A Defensoria Pública requisitará no Ofício)
- Certidão de casamento atualizada, se for o caso;
- Cópia do registro geral de identidade (RG);
- Cópia da identificação civil nacional (ICN), se for o caso;
- Cópia do passaporte brasileiro, se for o caso;
- Cópia do cadastro de pessoa física (CPF) no Ministério da Fazenda;
- Cópia do título de eleitor;
- Cópia de carteira de identidade social, se for o caso;
- Comprovante de endereço;
- Certidão do distribuidor cível do local de residência dos últimos cinco anos (estadual/federal);
- Certidão do distribuidor criminal do local de residência dos últimos cinco anos (estadual/federal);
- Certidão de execução criminal do local de residência dos últimos cinco anos (estadual/federal); (http://www.jfce.jus.br/jfce/certidaointer/emissaoCertidao.aspx);
- Certidão dos tabelionatos de protestos do local de residência dos últimos cinco anos; (Será solicitada pela Defensoria Pública)
- Certidão da Justiça Eleitoral do local de residência dos últimos cinco anos; (http://www.tse.jus.br/eleitor/certidoes)
- Certidão da Justiça do Trabalho do local de residência dos últimos cinco anos; (http://www.tst.jus.br/certidao)
- Certidão da Justiça Militar, se for o caso (https://www.stm.jus.br/servicos-stm/certidao-negativa);
- Certidão do Serviço de Proteção ao Crédito – SPC;
- Certidão da Centralização de Serviços dos Bancos – SERASA;
- Autodeclaração de Identidade de Gênero.
Ausência de políticas públicas
Para o presidente de honra da Adacho, André Lacerda, a não existência de documentos para trans e travestis reflete a vulnerabilidade, preconceito e constrangimento aos quais essa população está exposta.
“Muitas transexuais querem a mudança da documentação, mas não conseguem. E as que já estão no processo de transição, como vão chegar na casa do cidadão toda feminina com o nome de homem? Aí perde até o respeito, vem a vergonha”.
Somada à discriminação sofrida dentro e fora de casa, a falta de políticas públicas para a geração de emprego é outro fator que eleva significativamente a vulnerabilidade dessas pessoas.
“Você ainda encontra muitos gays e muitas lésbicas trabalhando, mas é difícil ver uma travesti ou mulher transexual. A maioria delas cai na prostituição e uma boa parcela vai pras ruas. Por que? Porque a família tem preconceito. Se vão para a escola, sofrem bullying por ter 'trejeitos' e pensamentos diferentes. Qual o caminho, se a sociedade exclui?”.
Em menos de 20 dias, o município de Juazeiro do Norte registrou duas mortes de pessoas trans. Além de Luana, a adolescente trans, Pietra Valentina, foi morta a facadas no dia 5 de abril. O homem suspeito de cometer o crime foi preso no último dia 28.
Combate à violência
De acordo com a defensora Mariana Lobo, a violência contra a população trans poderá ser combatida somente quando houver dados, mapeando crimes do tipo. “Hoje, infelizmente, ainda não temos esses dados consolidados. Mas a primeira coisa [necessária] para combater uma violência e fazer uma política de enfrentamento é conhecer os dados”.
Para tentar reunir essas informações, acrescenta ela, foi criada recentemente pela Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) uma comissão, da qual a DPCE faz parte.
O objetivo da comissão, diz, “é tentar efetivamente mudar o sistema de operações policiais para que a gente tenha esse recorte de dados quando o crime for cometido com preconceito ou violência à identidade de gênero”. Com os dados em mãos, será possível “projetar uma política de proteção”, atualmente inexistente no Ceará e em todo o Brasil.
O Relatório da Rede de Observatórios da Segurança, divulgado no dia 4 de março, apontou que, no ano passado, 13 pessoas transexuais foram assassinadas no Ceará devido à identidade de gênero. Os pesquisadores também levantaram dados dos estados de São Paulo, Pernambuco, Rio de Janeiro e Bahia, mas o Ceará foi o que registrou mais mortes deste público. As imprensas dos demais estados não registraram mortes de pessoas trans.