O impacto do aumento da pobreza no abandono escolar e a proteção social como caminho contra a evasão

A falta de uma proteção social integrada para os estudantes de escolas públicas agravou, no cenário de pandemia, o desinteresse pela escola

A pandemia escancarou ainda mais um problema que é anterior a ela e que sempre pareceu combatido timidamente, mas, quando o cenário piora, a pressão por uma solução aumenta. Cresce a pobreza nos lares e com ela o imediatismo da fome. Um dos reflexos é o desinteresse pelo ensino, seja remoto ou presencial, trocado pelo trabalho ou ócio.

Seja qual for a situação, será uma maneira de atender ao que se pede de mais essencial: comida e perspectivas. Lamentar não resolve, e especialistas ouvidos pelo Diário do Nordeste apontam que o caminho da proteção social de crianças e adolescentes não se consegue só com a escola.

Os dados mostram que a desigualdade aumentou. No ranking das vantagens, os mais ricos sobem enquanto os mais pobres descem. Em maio de 2021, 56% dos brasileiros (89 milhões de pessoas) declararam que o rendimento de casa reduziu com a pandemia. Os dados são da pesquisa Impactos Primários e Secundários da Covid-19 em Crianças e Adolescentes, lançada pelo Unicef.

Nos lares com crianças e adolescentes, são 64% dizendo que a renda diminuiu. Entre os com renda até um salário mínimo, a perda em renda chega a 80% dos lares. Na outra ponta, a de cima da pirâmide econômica, apenas 31% das famílias com mais de dez salários mínimos viu a sua renda diminuir na pandemia.

O desempenho estudantil ainda está sob medição, cujos dados trarão o dissabor, sugerem especialistas, de ver o impacto negativo do despreparo para o ensino remoto em meio a uma pandemia.

“A pandemia pegou a faixa etária de até 6 anos de uma maneira que não sabemos se dá pra reverter. Há um risco educacional e cognitivo. Nos adolescentes, há outro tipo de risco: a fase da adolescência é complementar a esse desenvolvimento da infância", explica Alesandra Benevides, doutora em Economia e coordenadora do Laboratório de Estudos da Pobreza (LEP) da Universidade Federal do Ceará (UFC) em Sobral. 

Ela prossegue: "O risco de manter adolescentes fora da escola são os riscos que o Brasil tem: a falta de segurança, o envolvimento com facções. É preocupante, porque é um caminho sem volta. Há um risco de segurança da comunidade, que não oferecemos”, alerta.

Embora reconheça a importância do trabalho de busca ativa nas escolas públicas do Ceará, trazendo alunos de volta à sala, o tempo de ausência cobrará seu preço.

A professora Jakeline Alencar, doutora em Educação e professora na UFC, defende que não basta a volta às aulas. "O aumento da pobreza traz de volta o fantasma da fome, de crianças que vão à escola em situação mais empobrecida. Quando temos isso de volta, o impacto sobre os índices vai acontecer necessariamente".

Não é questão de colocar todo mundo em sala de aula e vomitar conteúdo em cima das crianças: não é sobre uma força-tarefa de conteúdo, mas retomar políticas de proteção da criança pra que possam retomar o desempenho”
Jakeline Alencar
Doutora em Educação e professora na UFC

Criar um ambiente de proteção escolar

Assim como a fome não se resolve apenas com a merenda, para o aprendizado não basta ir à escola, como coloca o professor Rui Aguiar, chefe do escritório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) em Fortaleza.

“A escola é um ambiente de proteção e precisa ser apoiada. Mas a resposta não pode ser só da escola, mas integrada entre educação, saúde e assistência social", afirma.

E acrescenta: "Se é identificada uma criança fora da escola por conta do trabalho infantil, rematricular a criança e não criar as condições de renda para a família, ela vai voltar a abandonar a escola. A menina grávida, que também precisa ter uma atenção social na escola, ela precisa ter um bom pré-natal garantido, ter acompanhamento da assistência social, então é um todo integrado. Quanto mais complexa a situação, mais atenção aquela criança ou adolescente deve ter”.

Quem precisa muito dessa proteção está por aí, em todas as cidades em meio às vulnerabilidades, feito João (nome fictício), 16, que passou um ano e meio sem frequentar a escola. “Minha mãe só conseguiu me botar à noite, então eu deixei de ir, porque era perigoso demais. Pelo bairro mesmo. Só o que tem é violência. Voltei agora, neste ano, porque consegui vaga de manhã”. Ele está com maior atraso curricular que antes: deveria estar no 2º ano do ensino médio, mas ainda cursa o 7º ano do fundamental porque “repeti de ano várias vezes”.

Alesandra Benevides aponta para o Núcleo de Trabalho, Pesquisa e Práticas Sociais (NTTPS), no Ceará, que tem combatido a evasão escolar. “A infrequência já é um aviso para uma futura evasão: quando começa a faltar muito, o diretor de turma é acionado. Essas políticas que já existem precisam ser reforçadas para minimizar essas consequências que o período de afastamento está trazendo”.

A volta ao ensino presencial, que tem ocorrido de forma gradual, deve ser feita com cuidado, acolhimento e menos ansiedade, conforme a doutora Jakeline Alencar.

“Nessa retomada, é preciso ficar claro que a escola não é lugar de ranking ou conteúdo. Ela desenvolve para a cidadania. E a base disso é a acolhida. Para que a escola possa acolher, ver a educação como um bem. A prioridade é o bem-estar da família e das crianças.

E a saída, aponta Rui Aguiar, coordenador da Unicef no Ceará, está nos gestores municipais. "Essa evasão escolar será combatida com a liderança dos prefeitos. Eles precisam fortalecer a atuação integral desses três setores fundamentais: educação, saúde e assistência social. Essa liderança vai permitir programas de complementação de renda, mudanças orçamentárias, ou seja, um outro planejamento. Os prefeitos precisam liderar esse processo agora em novembro, dezembro e janeiro, para que em fevereiro haja melhores condições de proteção social àqueles que estarão reiniciando um ano letivo".

Ações governamentais

Procurada, a Secretaria da Educação (Seduc) informou em nota que, entre outras ações de amparo aos estudantes, realiza ações de busca ativa e permanência do estudante na escola. A pasta destacou ainda o Pacto pela Aprendizagem, programa "que fortalece o regime de colaboração entre o Estado e os 184 municípios cearenses para recuperar a aprendizagem dos estudantes do Ensino Fundamental (1º o 9º ano) diante do contexto de pandemia da Covid-19. 

O órgão cita ainda que, de acordo com dados do Censo 2020, "a rede estadual do Ceará registrou taxa de abandono de 2,9%. Este percentual se torna representativo para o Estado, considerando que em 2019 a taxa de abandono foi de 3,8%. Isso reforça o trabalho e o esforço para manter o acesso e engajamento dos estudantes. No ano de 2007, 16,4% dos alunos abandonavam os estudos. A redução ao longo do período, portanto, foi de 13,5 pontos percentuais".

Os dados de abandono do Censo Escolar de 2021, divulgados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), ainda não estão disponíveis.