Faltam comida, educação e saúde: pandemia gera “efeito dominó” nos direitos de crianças do Ceará

No Dia Internacional dos Direitos Humanos, cenário é de ausências para os que formarão as próximas gerações.

Cem milhões de crianças e adolescentes entraram em situação de “pobreza multidimensional” após a pandemia, estima o Unicef. O Brasil integra a lista de 10 países onde mais crianças deixaram de tomar vacinas essenciais, em 2020; ano em que, no Ceará, 135 mil ficaram excluídos da educação.

Neste 10 de dezembro, a data deveria ser de celebração dos 73 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, mas o significado se preenche de ausências: no Dia Internacional dos Direitos Humanos, é preciso falar do que falta. E falta, sobretudo, àqueles que formam a base das próximas gerações.

A privação de direitos à infância parte desde o mais fundamental, sem o qual ninguém se põe de pé: o alimento. Márcia Machado, professora do Departamento de Saúde Pública da Faculdade de Medicina da UFC e pesquisadora de infância e juventude, alerta que a fome é, sem dúvidas, a primeira peça do efeito dominó de violações a crianças e adolescentes no Ceará.

“Com a não ida à escola, crianças e jovens ficaram privados de até duas refeições por dia, quando o ideal mínimo para uma família é de três. Desemprego e fome geram nas famílias repercussões inimagináveis”, lamenta. A primeira delas, aponta, é o chamado “estresse tóxico”.

Permanentemente, a criança ou o adolescente já acorda sem ter o que comer. Isso gera agressividade, por exemplo. Há todo um conflito familiar aumentado pela questão da insegurança alimentar.

A professora, que integra o Programa Cientista Chefe da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap), destaca que um agravante em todo esse cenário foi a falta de uma política nacional de redução dos danos causados pela Covid.

“No Ceará, nós, pesquisadores, olhamos para os números e sinalizamos às secretarias, sugerimos o que fazer. Há essa escuta. A nível de Brasil não acontece. Veremos, nos próximos meses, um aumento crescente da fome e das questões de saúde mental de crianças e adolescentes de uma forma muito crônica”, adverte Márcia.

O chefe do escritório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) em Fortaleza, Rui Aguiar, concorda. "O pós-pandemia é tão desafiante quanto o período de pandemia, pois houve um 'represamento' na oferta de serviços para crianças e adolescentes".

Segundo ele, os principais desafios "estão relacionados com a universalização da imunização de crianças, o acompanhamento pedagógico de crianças que tiveram a aprendizagem comprometida por dois anos escolares remotos e a garantia da saúde mental, sobretudo entre adolescentes concludentes do ensino médio.

Muitos serviços disponibilizadas durante a pandemia precisarão ser ofertados de maneira contínua, sobretudo o acesso a dados de internet, kits de saúde menstrual, alimentação e renda complementar"
Rui Aguiar
Chefe do escritório da Unicef em Fortaleza

Apartheid brasileiro

 

Os prejuízos, então, incidem sobre uma área crucial para romper o ciclo da pobreza vivenciado por milhões de famílias: a educação. “Principalmente nas famílias mais vulneráveis, as crianças não tiveram acesso à escolarização. Temos no País um verdadeiro Apartheid – quem teve condição já está muito mais à frente”, sentencia Márcia Machado.

Em novembro de 2020, segundo estudo do Unicef, quase 1,5 milhão de pessoas de 6 a 17 anos não frequentavam a escola (remota ou presencialmente) – cerca de 135 mil delas cearenses. 

8
8 anos é o tempo estimado necessário, “na melhor das hipóteses”, para recuperar os níveis de pobreza infantil de antes da pandemia, de acordo com o Unicef.

Direito à segurança

 

Um dos contextos que massacram sobretudo as populações em situação de pobreza é a violência – sofrida ou presenciada, doméstica ou urbana. Os reflexos disso para crianças e adolescentes incidem, de forma mais direta, sobre um pilar estrutural da formação humana: a educação.

A psicopedagoga Renata Pires, mestre em psicologia, aponta que contextos de violência podem refletir nas salas de aula “das formas mais diversas e contraditórias”, resultado em crianças “extremamente quietas ou agressivas, com dificuldades importantes de aprendizagem”.

“A escola deve manter um canal aberto, para que as crianças se sintam acolhidas, sintam que ali é um espaço de cuidado e proteção. Isso pode acontecer através de conversas, encontros semanais, onde se discute as coisas do dia a dia”, exemplifica.

A profissional alerta também para o papel que a educação tem em relação à violência doméstica, que foi mais frequente ainda durante o isolamento social imposto pela pandemia, atravessada inclusive por questões de saúde mental.

É importante que os educadores observem quedas de rendimento, mudança de comportamento, retraimento, agressividade, postura mais alheia, distraída, dificuldades importantes de atenção. Um dos grandes desafios é que a escola se constitua como lugar de segurança. 

Convívio familiar

 

A defensora pública Thalita Nóbrega, titular do Núcleo de Atendimento da Defensoria Pública da Infância e da Juventude (Nadij), analisa que as múltiplas privações de direitos têm ampliado um grupo de crianças e adolescentes ainda mais vulnerável: os que vivem em unidades de acolhimento institucional.

Thalita explica que “essas crianças estão lá por terem tido seus direitos violados no âmbito familiar, que a pandemia prejudicou ainda mais”. Privação de direitos como lazer, proteção social, educação e saúde foram determinantes, como ela avalia.

"Aumentou a questão da pobreza, as dificuldades financeiras, e muitos familiares também foram prejudicados na questão de saúde mental. Isso reflete no abandono, na negligência e nos abusos físico e sexual de crianças e adolescentes", percebe.

O principal foco das políticas públicas nos próximos anos, então, sugere a defensora, “deve ser a reestruturação familiar”. “Se eles não tiverem uma base familiar consolidada, a consequência vai ser o abandono. As políticas devem ser voltadas para a família como um todo”, finaliza.

Quais os principais direitos humanos?

 

Adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos tem como espinha dorsal o direito às liberdades, mas lista também direitos básicos constitucionais, como:

  • Alimentação;
  • Habitação;
  • Cuidados médicos;
  • Segurança social;
  • Lazer e repouso;
  • Cultura;
  • Trabalho e outros.

O artigo 25, por fim, reforça o que tem mais tem sido atacado, antes mesmo de 2020, com a chegada do coronavírus: “a infância tem direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social”.