Uma nova doença que tem assustado o mundo, embora não seja necessário pânico. E diante disso, o que a ciência pode fazer? Trabalhar com afinco para descobrir os caminhos possíveis de reduzir os danos provocados por um novo mal. Um dos achados é o sequenciamento do genoma do coronavírus Covid-19. O Brasil foi um dos países onde mais rapidamente se obteve essa informações. A média mundial em processos desse tipo é de 15 dias para realizar a descoberta.
Na equipe, que envolve pesquisadores do Instituto Adolpho Lutz e do Instituto de Medicina Tropical, ambos em São Paulo, e a cooperação da Universidade de Oxford, no Reino Unido, há um cearense: Darlan da Silva Candido. Pesquisador de 28 anos, natural de Quixeramobim, ele mora no Reino Unido e defende o relevante papel da ciência brasileira. Em entrevista ao SVM, Darlan explica qual sua participação nesse grande feito para a saúde pública e garante “é uma vitória do cearense, do nordestino, do brasileiro”.
Qual a sua formação?
Eu sou cearense de Quixeramobim, estudei na Escola Pequeno Príncipe e no Colégio Nossa Senhora do Rosário que é religioso e fiz até o terceiro ano. Depois, eu fiz Faculdade de Farmácia na UFC (Universidade Federal do Ceará), consegui um estágio no Centro de Formação das Doenças Negligenciadas (nome em português), na Universidade da Califórnia, em São Francisco (EUA). Então, na Faculdade de Farmácia eu já trabalhava com atenção farmacêutica a pacientes com doença de chagas. Eu sempre tive esse interesse. Consegui esse estágio e fiquei lá por seis meses. Mas, depois do primeiro mês, eles me ofereceram uma extensão da bolsa do programa Ciência Sem Fronteiras (do Governo Federal do Brasil, que em 2017 foi extinto para a graduação) preu ficar lá e terminar o meu projeto. Depois disso, eu voltei. No total foram 16 meses. Foi de agosto de 2012 a dezembro de 2013. Voltei, terminei Farmácia na UFC. Na Faculdade de Medicina da USP, fiz mestrado em Imunologia. E fiquei dois anos no Instituto do Coração onde eu fazia pesquisa com chagas. Mais sobre os mecanismos biológicos que levam a doença cardíaca na doença de chagas. Então, os pacientes com chagas que iam fazer transplantes, a gente coletava uma amostra do coração antigo e e fazia os estudos no ventrículo esquerdo do paciente. Já em 2017, passei para Oxford (primeira universidade de língua inglesa do mundo, considerada a melhor do Reino Unido e uma das melhores do mundo) , na Inglaterra. Eu ganhei uma bolsa da universidade.
Como foi esse processo?
Eu quero mostrar para as pessoas que eu sou como qualquer outra pessoa do estado (do Ceará). Tipo, não vim de família rica. Por exemplo, em 2017, eu fui o único latino americano a ganhar a bolsa mais prestigiada de Oxford. Só 120 pessoas ganham essa bolsa. Ganhei a bolsa e vim pra cá. Continuei fazendo essa parte de insuficiência cardíaca que eu já vinha da doença de chagas, mas eu não gostei muito do meu projeto e mudei. Acabei encontrando o Nuno (Nuno Farias, pesquisador natural de Portugal, referência mundial em doenças infecciosas de origem tropical) que é meu orientador nesta parte que a gente chama de epidemiologia genômica, essa parte de sequenciamento de vírus diante de surtos epidêmicos.
Foi assim que conheci o pessoal de São Paulo (pesquisadores do Instituto de Medicina Tropical que atuaram com equipes do Instituto Adolpho Lutz e da Universidade de Oxford para sequenciar o genoma do coronavírus). Meu orientador já tinha essa colaboração com eles, inclusive foi ele junto com esse grupo de São Paulo que sequenciou as primeiras amostras de zika no Brasil. Eu não fazia parte do grupo. Agora, ficamos bastante amigos e basicamente todos os nossos projetos são junto com esse grupo em São Paulo.
O meu doutorado é focado em arboviroses. Agora vou começar a trabalhar com coronavírus também como resultado da epidemia. Mas nosso foco é olhar como que as arboviroses estão se dispersando. A gente faz isso com base nos dados epidemiológicos, ou seja, nos casos e também através do sequenciamento do genoma do vírus. Então, meu foco principal é chikungunya, inclusive estamos terminando agora um estudo sobre chikungunya no Ceará e vai ser legal trazer isso de voltar para o Estado.
Qual sua participação específica no trabalho que sequenciou o genoma do novo coronavírus no Brasil?
Apesar de eu fazer sequenciamento, usar as mesmas técnicas usadas em São Paulo, eu não tenho participação direta na parte laboratorial porque eu não estava lá. Então, não tinha como fazer isso. Elas fizeram a parte laboratorial lá (pesquisadoras de São Paulo) e existem análises que a gente faz depois que o resultado da parte laboratorial sai. Essas análises são feitas em Oxford. Eu entro nessa segunda parte. As meninas recebem a amostra inativa. Elas fizeram o sequenciamento e a gente faz as análise do sequenciamento. Devido aos casos de coronavírus e sabendo que, em algum momento, ia chegar no Brasil, a gente já estava se preparando para responder a essa possível epidemia. Oxford mandou os regentes para o grupo em São Paulo para fazer o sequenciamento. Porque já trabalhamos com eles há muito tempo.
Explica para quem é leigo como é feito esse sequenciamento
O processo de sequenciamento, nada mais é que, a gente faz várias cópias do vírus para a gente ter quantidade suficiente para sequenciar. Imagina que o sequenciamento é a identidade do vírus. É o material genético. Então, uma sequenciazinha de letras que indica a estrutura do vírus, a proteína e a função. Assim como a gente tem DNA e acumula mutações nesse DNA, os vírus, com o tempo, também apresentam mutações. Isso é um processo natural. Quando a gente sequencia o material genético, a gente tá sequenciando basicamente a identidade dele.
Qual a relevância tanto em termos de descoberta para a ciência quanto em impacto para a sociedade?
Por que isso é importante? Porque quando a gente sequencia, a gente consegue fazer correlações geográficas, de espaço, de tempo, saber como o vírus está se dispersando. Consegue saber de onde o vírus veio, como foi feita essa introdução no Brasil. Na verdade, até saber se tem mais de uma introdução. Digamos que vem um paciente da Itália e um da China para o Brasil e os dois estão infectados. É possível que os vírus sejam diferentes um do outro porque os vírus já podem ter mutado. Então, a gente precisa entender esse processo pra entender qual a diversidade de vírus que vai estar circulando no país. Depois que saí essa sequência, a gente precisa montar o genoma em si que é para ter certeza que está tudo na ordem certa. Identificar que o vírus está certo e a gente precisa fazer as análises de vírus de outros países. O que fazemos é basicamente uma análise por comparação. O computador faz. A sequência por similaridades e por diferenças. A gente consegue identificar quais sequências são mais próximas de outra. E aí nisso eu consigo saber, provavelmente, se o vírus que está infectando no Brasil é da Itália, da China, da Alemanha. Minha participação mais específica é nessa parte secundária de análise.
O fato de ser uma doença que está preocupando o mundo, faz com que para você essa pesquisa seja uma das mais relevantes que você já integrou?
É um fato muito interessante porque ela está acontecendo agora. Nós sequenciamos em dois dias. Outros países levaram, em média, 15 dias ou mais. Antigamente, a gente só conseguia sequência depois da epidemia. Hoje, a gente está fazendo o que a gente chama de sequenciamento em tempo real. Acontece, a gente sequencia. A gente tá assistindo o vírus se espalhar e evoluir e conseguimos ir aprendendo mais e mais sobre o vírus e sobre o padrão de mutação dele. Isso permite que a gente tenha uma ação de resposta muito mais rápida. Usamos um sequenciador portátil que é do tamanho do celular. A gente leva ele no bolso e para onde a gente quer.
Isso também reafirma a qualidade da pesquisa brasileira? E a relevância das parcerias na ciência?
Nós somos muito inteligentes, os brasileiros. E conseguimos fazer muito com pouco. A gente lembra da importância do papel da ciência. E tudo isso vem com muitos anos de investimento e pesquisa. Isso tudo a gente quis frisar com as 48 horas (tempo levado para conseguir sequenciar o genoma do coronavírus). É mostrar o potencial da pesquisa brasileira para os agentes de políticas públicsa e para a sociedade. Por exemplo, eu estou em Oxford, eu represento o Brasil, mas também represento Oxford. Essa parceria é o que permite que a gente consiga juntar expertises diferentes e dar respostas de forma tão rápida. Cada um foi fazendo um pedacinho para que a gente conseguisse ter o relatório pronto em 48 horas. Você precisa de alguém que receba amostra, faça o preparo, mande o sequenciamento para cá, escreva o relatório. Somos um time extremamente conectado e cada um faz um pedacinho, mas é um pedacinho muito relevante. Não foi só uma pessoa, foi um grupo de pessoa que se juntou por um objetivo para dar o resultado o mais rápido possível. É importante frisar a questão de fazer o compartilhamento dos dados, que tem mudado dentro da ciência. A gente tem o resultado e já libera. Porque antes a gente esperaria para fazer uma publicação do resultado. Isso é um avanço na comunidade científica.
E falando mais especificamente da tua trajetória, como sua família e você se sente alcançando tantos resultados na ciência brasileira e sendo “uma pessoa comum” como você falou?
Eu não estava preparado para a repercussão toda. Quando veio, para mim, é um pouco diferente. Muita gente de Quixeramobim está falando comigo. Quero mostrar para as pessoas que existem oportunidades no mundo. As oportunidades não são iguais, infelizmente. Mas quando a gente se esforça e consegue o apoio das pessoas a gente alcança. É uma vitória do cearense, do nordestino, do brasileiro. Uma vitória do nosso grupo que mostra o quanto a gente pode ir além do que a gente pensa. Em Quixeramobim está meio um alvoroço. É muito legal ter esse retorno. A minha mãe está muito feliz e acho que ela quase chorou quando falei que ia dar uma entrevista para o jornal. A gente nunca teve isso. Dentro dessa minha trajetória, eu nunca tive exposição. E é legal você chegar nesse momento porque talvez isso possa inspirar outras pessoas.