Para dirigir um veículo, é preciso ser habilitado. Porém, essa exigência legal nem sempre é respeitada no Ceará, e em algumas ocasiões, é possível constatar que até mesmo crianças e adolescentes assumem a direção de motocicletas e carros.
O alerta é do Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE). Em junho e agosto, recomendações foram expedidas aos municípios de Madalena e Independência para impedir que jovens abaixo de 18 anos dirijam veículos automotores.
A reportagem consultou órgãos de trânsito que atuam no Estado para verificar se há multas de trânsito expedidas com relação a menores de idade. A Polícia Rodoviária Federal no Ceará (PRF-CE) informou que “dentro das nossas estatísticas, não existem parâmetros para o levantamento de infrações cometidas por condutores menores de idade”.
O Departamento Estadual de Trânsito (Detran-CE), que monitora as rodovias estaduais, também não deu detalhamento por idade, mas informou quantitativos sobre multas que podem ter ligação com a prática.
Nos últimos dois anos e meio, entre 2019 e o primeiro semestre de 2021, foram registradas 57.391 infrações aos artigos 162, 163 e 164 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), em todo o Ceará.
A primeira, com 32.264 registros, se refere a dirigir veículo sem possuir Carteira Nacional de Habilitação (CNH) ou Permissão para Dirigir (PPD).
No segundo caso, o proprietário do veículo está junto ao condutor não habilitado, no momento da abordagem. Foram 381 infrações do tipo no período analisado. Segundo o Manual Brasileiro de Fiscalização de Trânsito, as hipóteses para a lavratura incluem o “proprietário ensinando o condutor a dirigir” e o "proprietário como passageiro do veículo”
Já o terceiro, que responde por 24.746 registros, caracteriza-se pela ausência do proprietário durante a abordagem. Conforme o Manual, um dos casos é quando o dono do veículo permite a posse e a direção por um condutor inabilitado.
As duas últimas situações são de responsabilidade do proprietário do veículo, sendo consideradas infrações gravíssimas, sujeitas a sete pontos na carteira, multa multiplicada por três (chegando a R$880,41) e retenção do veículo.
Os casos também podem configurar ação penal com base no artigo 310 do CTB, por “permitir, confiar ou entregar a direção de veículo automotor a pessoa não habilitada, com habilitação cassada ou com o direito de dirigir suspenso, ou, ainda, a quem, por seu estado de saúde, física ou mental, ou por embriaguez, não esteja em condições de conduzi-lo com segurança”. A pena é detenção de seis meses a um ano, ou multa.
Motivações variadas
O promotor de Justiça Alan Moitinho, autor das recomendações, descreve que no Sertão Central cearense é “costumeiro” visualizar menores conduzindo veículos, principalmente motocicletas, ainda que a CNH seja reservada a maiores alfabetizados.
Percebemos que, na maioria dos casos, os menores pegam a pedido dos pais, para dar uma volta; outras vezes, é por conta própria, para participar de rachas, se mostrar na comunidade. Infelizmente, tem ocorrido também a captação de menores pelo crime organizado, para funcionarem como aviões do tráfico de drogas.
Moitinho reforça que os pais são “totalmente responsáveis” pela conduta dos filhos, sendo inclusive notificados sobre os trâmites legais. Só em Independência, o promotor já registra mais de 10 procedimentos relacionados a infrações cometidas por adolescentes.
“Normalmente, na proposta de transação penal, eu tenho oferecido proposta de pagamento em dinheiro, de um a dois salários mínimos, para que os pais tenham ciência da responsabilidade e saibam que vai doer no bolso”, destaca.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) também prevê infração administrativa se os pais entregam ou confiam os veículos aos filhos, descumprindo os deveres do poder familiar, podendo levar a uma multa de três a 20 salários mínimos.
Proteção à vida
Alan Moitinho explica que os órgãos de trânsito não têm como autuar menores porque o CTB só é aplicável aos maiores. Porém, se o menor entre 12 e 17 anos provoca um acidente de trânsito que leva a lesão ou homicídio, vai responder por um ato infracional análogo.
“Com essas fiscalizações, além de proteger os adolescentes e a coletividade, protegemos a saúde. Evitamos acidentes e que possíveis vítimas sejam encaminhadas a hospitais, muitas vezes com lesões de gravidade média ou alta, que exigem transporte de ambulância. É um dinheiro reduzido dos cofres públicos”, ressalta.
Educar desde sempre
Segundo a psicóloga especialista em trânsito e professora universitária Mércia Capistrano Oliveira (CRP11/1489), a lei brasileira se baseia em estudos que mostram que, em adolescentes, ainda não há maturidade emocional, tempo de resposta e reação suficientes para a direção prática.
Além disso, tem a responsabilidade legal que eu preciso assumir quando estou no comando de um veículo, porque estou conduzindo um equipamento que tem o poder de causar acidentes e ferir pessoas.
Moradora de Quixadá, a especialista confirma que, em cidades pequenas, a entrega de veículos a menores é justificada por frases como “vou só ali e volto”, “meu filho, comprar uma coisinha pra mim”. “Os pais acham que, porque o filho está ajudando, está tudo bem. Mas não, não está. Mesmo dentro da cidade, há acidentes graves”, afirma.
A psicóloga recomenda que a educação para o trânsito seja tratada dentro de casa, desde que os filhos são crianças, mantendo a firmeza de negar os pedidos de direção feitos antes da maioridade.
“A meu ver, é necessário nunca autorizar. Se eu deixar uma vez porque me é conveniente, não vou ter mais autoridade para não deixar outra vez. É nunca permitir mesmo”, defende.