Quando o sofrimento mental se agrava, na escuridão do desamparo familiar e profissional, anualmente centenas de cearenses tiram a própria vida. Entre tabus e angústias, o suicídio se impôs como problema de saúde pública, exigindo olhar políticas efetivas. Entre janeiro e julho de 2020, 306 pessoas cometeram o ato no Ceará, uma média de 43 por mês, conforme dados do Integra SUS, plataforma da Secretaria da Saúde (Sesa). Especialistas e gestores reforçam: é possível e é preciso buscar ajuda.
Outra base de dados, o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), atualizado até 6 de julho, mostra que os meses com mais registros de casos no Estado foram março (44), abril (49) e maio (50), períodos de chegada e de maior incidência da pandemia de Covid-19. Apesar disso, houve uma redução do número de suicídios em relação ao mesmo período de 2019: nos seis primeiros meses do ano passado, foram 348 ocorrências.
Luísa Weber Bisol, psiquiatra e professora de Medicina Clínica da Universidade Federal do Ceará (UFC), aponta que a maioria dos suicídios ocorre com pessoas que têm algum transtorno mental, como depressão, bipolaridade, uso de substâncias psicoativas, esquizofrenia e transtorno de personalidade borderline, os cinco principais. "Em cada dez suicídios, nove poderiam ter sido prevenidos, se eles fossem adequadamente tratados. É preciso treinar os profissionais de saúde não-psiquiatras para identificá-los e dar o encaminhamento correto", afirma.
A médica salienta ainda que uma "rede de apoio familiar e social" é importante, mas que há um déficit grande sobre a questão na atenção à saúde. "80% das pessoas que cometeram suicídio estiveram com algum profissional de saúde no mês anterior, e poderiam ter tido o risco identificado. Se conseguirmos, no nosso check-up de rotina, além de medir pressão, frequência cardíaca e glicose, inserir perguntas para identificar a desesperança - algo muito ligado ao suicídio -, talvez possamos preveni-lo", sugere Dra. Luísa.
Perfis
Em 2020, os jovens entre 20 e 29 anos e os idosos compõem as faixas etárias mais preocupantes, concentrando 63 casos de suicídio cada. Outro grupo de risco são os homens: 84% dos 306 casos consumados no Ceará foram entre eles. O marido de Luana* (nome fictício), conhecido pelo bom humor e pelo "gosto por conhecer coisas novas", entrou nas estatísticas neste ano: Rodolfo* tinha 32 anos quando se suicidou.
Para Adriano Sousa, coordenador de Políticas de Saúde Mental da Sesa, o ritmo e as expectativas da sociedade atual incidem diretamente no problema sobre os mais novos. "Jovem tem uma necessidade de sempre ter o novo, ser o melhor, viver num mundo de felicidades. Mas a busca pela felicidade intensa não existe, o mundo tem elevações cíclicas", pontua.
Entre os idosos, a mais velha das vítimas tinha 94 anos. Deborah Brito, psicóloga especialista em prevenção do suicídio, aponta que o abandono afetivo é o maior fator.
Já a predominância entre os homens pode ser atribuída à construção social do gênero, como explica a psicóloga e professora do Departamento de Psicologia da UFC, Vládia Jucá. "Os homens são construídos para colocarem essa agressividade pra fora, e as mulheres, para internalizarem. A automutilação acontece em ambos, mas eles chegam a consumar mais", pontua.
Fatores
O isolamento social imposto pela pandemia também pode ter potencializado o sofrimento psíquico de quem chegou ao extremo de tirar a própria vida. "Percebemos um incremento muito significativo do consumo de álcool, o aumento da solidão, principalmente entre idosos e pessoas com deficiência. A questão do luto, também, que incidiu de uma forma muito crítica por causa das mortes por Covid", aponta Hugo Porto, promotor de Justiça e coordenador do Programa Vidas Preservadas, parceria entre Ministério Público do Ceará (MPCE) e outras instituições para prevenção.
Apesar desses, os fatores que podem levar ao ato são múltiplos e devem ser considerados na assistência à saúde, como salienta a psicóloga Deborah Brito. "O instinto é multifatorial, não decorre de um fato isolado. As pessoas são seres biopsicossociais e espirituais, todas as instâncias são importantes, não só o trabalho ou a família. Quando alguém tem uma ideação suicida e recorre a um posto de saúde que tenha um profissional com compreensão disso e da necessidade de tratamento, ela é melhor assistida. Quando não existe, essa pessoa pode ser negligenciada", alerta.
Os postos, aliás, são a porta de entrada para a assistência em saúde mental, como reforça Rui de Gouveia, coordenador da Atenção Primária e Psicossocial de Fortaleza. "O suicídio, para acontecer, requer que a pessoa venha passando por um sofrimento psíquico prolongado. A detecção desse sofrimento precisa acontecer. O primeiro local que deve ser procurado, em todo processo de cuidado, são as unidades básicas. Se não for resolvido lá, temos os CAPS", informa. Atualmente, o Ceará conta com 112 Centros de Assistência Psicossocial (CAPS), dos quais 15 são na Capital.
Ajuda
Buscar auxílio profissional é indispensável para cuidar da saúde emocional e evitar que se chegue ao ápice - mas observar o outro, ouvi-lo e estar disponível são deveres de toda a sociedade. "Mais do que dizer algo, é preciso saber escutar. É preciso oportunizar que a pessoa em sofrimento fale sobre esse mal estar. Quando começam a falar, geralmente conseguem se segurar. Deve ser uma escuta compreensiva, mas que também vá mapear as circunstâncias", orienta Vládia Jucá.
Esse mapeamento, como complementa Deborah, é importante para orientar quem precisa a serviços de atendimento adequados. "Durante uma crise, a pessoa precisa de acolhimento, de escuta sem interrupções, pois já está no ápice. Quando ela diz que está cansada demais, quer sumir, dormir e não acordar, é importante perguntar quais os planos dela para o futuro? Isso dá margem para sabermos direcioná-la à ajuda necessária", ensina a psicóloga.
Um dos serviços voluntários que exercem a escuta atenta a quem precisa é o Centro de Valorização da Vida (CVV). De janeiro a abril deste ano, o canal recebeu 35.658 ligações de Fortaleza e da Região Metropolitana, 14,9 mil delas só em março e abril. Residentes de Juazeiro do Norte e de Sobral acrescentaram outros 18.432 chamados ao centro. A coordenadora do CVV na Capital, Rejane Felipe, aponta que o sentimento de solidão é o maior motivador da procura por ajuda.
"Há muitas ligações falando de solidão acompanhada: gente que está no trabalho, em casa, cercado de gente, mas sem ninguém com disponibilidade para ouvir. Nós percebemos como é importante, na hora da dor, da solidão, saber que alguém tá disponível pra ouvir sem julgamento, com atenção, numa relação de confiança. Nós fazemos a diferença numa sociedade da intolerância, da indiferença, que não ouve mais as pessoas", destaca Rejane, voluntária do centro há 23 anos.