Por 19 anos, Veruska Rabelo, de 39, sobreviveu respirando medo. Passou quase metade da vida sob violência psicológica do então ex-marido, até conseguir se juntar à média de 1.500 mulheres que denunciam violência doméstica no Ceará por mês.
As estatísticas, mesmo borradas pela subnotificação, assombram: a cada 1h, duas mulheres denunciaram os agressores às autoridades do Ceará, em 2021. De janeiro a junho, foram 8.960 vítimas nos registros da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS).
Muitas, porém, não chegam a compor esses dados. Não têm vídeos explícitos provando a violência perturbadora que sofrem, como tinha Pamella Holanda, agredida pelo ex-marido, Iverson de Souza Araújo, o DJ Ivis, 30.
Veruska, por exemplo, vivia a violência em silêncio. O receio e as dependências financeira e emocional que a ligavam ao agressor prolongaram as agressões psicológicas – cujos primeiros indícios foram vistos já no início do relacionamento.
"Eu tinha um relógio que meu ex tinha me dado, e ele não queria que eu usasse. Quis voltar a estudar, ele disse que não precisava. Não gostava que eu conversasse com o meu pai, eu não podia ir ao mercantil, atender uma ligação, ter contato com o mundo", desabafa.
A tentativa de controle piorou ao longo dos anos, como relembra Veruska, que “sequer podia escolher o sabor da pizza que ia comer”. Mas preocupação com o que as pessoas pensariam de uma separação, principalmente as da igreja que frequentava, a imobilizavam.
Eu não tinha coragem de tomar atitude. Ele dizia que eu não tinha opção, e durante muitos anos acreditei. Eu tinha muito medo de tudo. De quebrar a cara, de não conseguir ajuda. Mas eu tinha muito claro que eu não queria mais ele.
O ciclo violento, que muitas vezes se aproximou de agressões físicas, teve fim em abril deste ano, quando Veruska solicitou medida protetiva à Justiça e o ex-marido foi obrigado a sair de casa e proibido de se aproximar dela por quaisquer meios, inclusive online.
Em novembro de 2020 e março deste ano, ela já havia registrado outras duas denúncias na Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) – mas voltava atrás quanto à expulsão do agressor de casa.
Eu não achava que eu seria capaz, que eu teria forças. Eu tinha medo até de pensar. Fui até o meu limite. Mas a cada etapa eu me fortalecia mais. Hoje eu me sinto mais forte, sei que sou capaz.
Como romper o medo e buscar ajuda
Além de autoridades policiais, Veruska foi atendida – ou “acolhida”, como prefere dizer – pelo Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher da Defensoria Pública do Estado (Nudem), em Fortaleza.
O equipamento é um dos que compõem a Casa da Mulher Brasileira (CMB), que concentra todos os órgãos de assistência à mulher vítima de violência.
Daciane Barreto, coordenadora da Casa, aponta que o medo, o machismo, os tabus e a dependência financeira – 35% das assistidas não possuem renda – se colocam como barreiras imensas para as mulheres denunciarem.
Nosso desafio é contribuir pra que as mulheres, inclusive transexuais e travestis, não se calem. Liguem para o 180, 190, busquem a CMB. O ciclo da violência é um dos mais terríveis e difíceis de romper.
Além de reunir delegacia e órgãos de Justiça especializados, a Casa da Mulher Brasileira oferta suporte psicossocial e de autonomia econômica. Todo o atendimento é feito por mulheres, e a privacidade e proteção da vítimas são garantidas.
>> Casa da Mulher Brasileira – Rua Tabuleiro do Norte com Rua Teles de Sousa, S/N. Bairro Couto Fernandes, Fortaleza, Ceará. Telefone: (85) 3108-2999.
Segundo Daciane, o Governo do Estado busca financiamento junto ao Banco Mundial para implantação das “Salas Lilás” em delegacias comuns do interior do Ceará, onde não haja Delegacia da Mulher. A ideia é dar mais confiança às vítimas para prosseguirem com a denúncia.
Tipos de violência contra a mulher
Anna Kelly Nantua, defensora pública do Nudem, lista quais os tipos de violência contra a mulher tipificados e descritos pela Lei Maria da Penha (nº 11.340/2006):
- Violência física – ofende a integridade corporal, deixa marcas no corpo;
- Violência psicológica – causa danos emocionais, com diminuição da autoestima, controle de ações, crenças, comportamentos, humilhação, xingamentos etc.
- Violência sexual – constrangimento a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força;
- Violência moral – prática de calúnia, difamação ou injúria;
- Violência patrimonial – retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades.
A defensora alerta que “a violência psicológica é a porta de entrada de outros atos de violência, na maioria dos casos” e que “se a mulher se perceber vítima dessa violência logo aí, fica mais fácil de romper o ciclo”. Mas, na prática, “é muito difícil que ela se reconheça”.
Outro fator é a descrença das vítimas no sistema de Justiça, que alimenta o pensamento de que a denúncia “não vai dar em nada”.
A mulher precisa confiar nos órgãos de proteção e denunciar, saber que as políticas públicas existem, estão a favor dela, e são onde ela vai encontrar acolhimento e empoderamento para buscar uma nova vida.
O que serve de prova da agressão?
Para solicitar medida protetiva emergencial contra o indivíduo, não é preciso provar violência sofrida, como explica Anna Kelly. Mas caso a situação envolva um crime, como agressão, por exemplo, as provas podem ser coletadas pela própria vítima.
Contatos do Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher (Nudem)
Nota Pública
Na tarde desta segunda-feira (12), o Ministério Público do Ceará emitiu nota públicamanifestando repúdio à violência doméstica e destacou que irá fiscalizar a efetivação da Lei Maria da Penha.
"Por meio do do Centro de Apoio Operacional da Cidadania (CAOCIDADANIA), do Núcleo de Atendimento às Vítimas de Violência do MPCE (NUAVV), do Núcleo de Gênero Pro Mulher (NUPROM) e da 3ª Promotoria de Justiça com atribuição para acompanhamento de Inquérito Policial (IP) de violência doméstica e medida protetiva na comarca do Eusébio, diante dos recentes acontecimentos relativos à prática de violência física e outras desferidas por personalidade do meio artístico contra sua esposa, vem apresentar repúdio a todo e qualquer ato de violência, notadamente contra a mulher, bem como ratificar e reiterar a importância de que esses sejam sempre denunciados, principalmente aos órgãos competentes para o processo de responsabilidade criminal e também de apoio psicossocial às vítimas, visto que o silêncio é um comportamento que apenas favorece ao agressor e à perpetuação da violência na sociedade".
O órgão ainda afirmou que "todas as medidas e esforços estão sendo aplicados para garantir a efetiva primazia do respeito à dignidade da pessoa humana, da paz social e da Justiça, bem como para a inarredável busca da efetivação da Lei Maria da Penha, honrando a luta de todas as mulheres para uma convivência em um mundo sem violência".
Aplicativo gratuito auxilia mulheres em violência
O aplicativo PenhaS, desenvolvido pelo Instituto AzMina, reúne informações e ferramentas gratuitas para combate à violência contra a mulher. Por meio dele, é possível compartilhar experiências com outras mulheres, de forma anônima, e ver um mapa de delegacias e serviços de atendimento.
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Além disso, o app oferece a função "botão de pânico", por meio do qual a vítima pode escolher cinco pessoas de confiança para acionar em um clique, em caso de emergência. É possível, ainda, ativar uma gravação de áudio no momento da violência, para produzir uma prova contra o agressor.
Para começar a utilizar o app, é preciso realizar um cadastro com dados pessoais e, em seguida, responder a perguntas-chave sobre o relacionamento, para identificar se a usuária pode estar ou não em situação de violência. Todas as informações permanecem em sigilo.