No Ceará, 41,5% das mortes maternas, entre 1º de janeiro de 2019 e 31 de março de 2021, foram de mulheres que só tinham completado o ensino fundamental. A correlação entre mortalidade materna e baixa escolaridade está na plataforma IntegraSUS, da Secretaria da Saúde (SUS), e escancara o impacto direto das desigualdades sociais nas mortes de mulheres.
“A maioria das mortes maternas são evitáveis”, crava a obstetra Liduína Rocha, do Coletivo Rebento de Médicos em Defesa da Ética, da Ciência e do SUS (Sistema Único de Saúde).
Segundo a médica, além da questão da escolaridade, “mulheres negras morrem mais do que mulheres brancas”. Também, ela chama atenção para o que provoca esses óbitos, especialmente, em territórios periféricos.
“Quando a gente fala de mortes maternas, a gente fala de demoras. Demora da mulher ou da família em perceber uma doença, demora no acesso [à rede de assistência à saúde] e demora na instituição da terapêutica certa”, explica.
Para Francisco Nogueira Chaves, obstetra do Hospital e Maternidade José Martiniano de Alencar, algumas dessas demoras estão diretamente ligadas à falta de acesso à educação.
“Quando vai ser feito estratificação da parte social, de conhecimento, é observado que mulheres de menor poder aquisitivo, com menos estudo, procuram menos a assistência primária [postos de saúde], que é tão importante, que é o pré-natal para diagnosticar precocemente e, se possível, evitar as doenças e complicações [da gravidez]”.
Dentre as complicações mais comuns que podem surgir durante uma gestação e que podem ser agravadas sem um pré-natal e terapia adequados, Liduína cita hemorragia e hipertensão. “Acontecem aqui [no Brasil], nos EUA [Estados Unidos da América], em usuárias da [rede de] saúde suplementar e em usuárias do SUS. O que determina uma [mulher] morrer e a outra não é a terapia feita no momento adequado, de forma oportuna”, elucida a obstetra.
Planejamento familiar
Considerando que a maior parte das mortes maternas por complicações na gravidez, no parto e no puerpério podem ser evitadas, o obstetra Francisco Nogueira ressalta que uma das formas de prevenir essas complicações é fazendo um planejamento familiar.
Por exemplo, segundo o médico, “uma paciente que tem diabetes e não sabe, tem quatro vezes mais chance de ter uma anomalia congênita. No entanto, se [a diabetes] for controlada antes de [ela] engravidar, fica tudo bem e ela passa a ter o risco da população geral”, cita.
Essa situação, contudo, é ideal. Não é comum. Principalmente num cenário real em que a maior parte da mortalidade materna é de mulheres com somente o ensino fundamental completo.
Além disso, quando se estratifica esses dados por faixa etária, segundo o IntegraSUS, dentre as que morrem, há uma quantidade considerável de jovens entre 15 e 19 anos de idade (14,9%), o que eleva o potencial de risco gestacional. “Gestações bem no início da vida reprodutiva ou muito tardiamente são de risco maior”, assegura Nogueira.
Gravidez na adolescência
Enfermeira da Rede Cuca, Larissa Pereira ressalta que, quando uma jovem em idade escolar engravida, “a tendência é não concluir os estudos, porque é uma nova realidade” a enfrentar. Principalmente, ela menciona, quando não há apoio da família nesse processo e quando o pai não assume a própria parcela de responsabilidade.
Por isso, segundo a profissional, a Rede Cuca reforça em diálogos diretos com os jovens, rodas de conversa e palestras, o papel dos meninos na paternidade responsável — o que engloba o cuidado com a gestante e, consequentemente, a prevenção à mortalidade materna. “Não é só a menina que vai ter responsabilidade antes do tempo. O menino também”, afirma.
Além disso, Larissa diz que a rede também aborda a prevenção à gravidez na adolescência. Tanto na facilitação do acesso a preservativos quanto na orientação sobre Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs), uso de métodos contraceptivos e outros temas relacionados à saúde sexual e reprodutiva.
Impactos da pandemia
O enfrentamento à Covid-19 tem sido outro fator que, associado às vulnerabilidades sociais, eleva as taxas de mortalidade materna. “Nossa razão de mortalidade materna, que era próxima de 60 por 100 mil nascimentos, foi para 97 por 100 mil nascimentos” ao longo da pandemia, diz Liduína Rocha. Principalmente por dificuldades no acesso à rede de saúde.
Conforme estatísticas do IntegraSUS, a maior parte dos óbitos maternos por Covid-19 foi de puérperas (57,9%), ou seja, que deram à luz há pouco tempo. Gestantes representaram 42,1% das mortes, de acordo com a plataforma, atualizada às 9 horas desta quinta-feira (8).
“O cenário da pandemia mostra o tensionamento dos pontos de atenção à saúde. Fica ainda mais claro a necessidade de estar mais atento às desigualdades e vulnerabilidades sociais”, conclui a obstetra do Coletivo Rebento.
Para o obstetra Francisco Nogueira, além das dificuldades encontradas no acesso aos serviços de saúde durante a pandemia, a própria infecção também deixa as mulheres mais suscetíveis a agravamentos na gestação. “É de conhecimento hoje que, principalmente quando [a Covid-19] ocorre no terceiro trimestre [da gravidez], passa a ser de alto risco”, afirma. Segundo ele, já foram observadas alterações que podem potencializar fenômenos tromboembólicos e, também, a distensão abdominal natural diminui a capacidade pulmonar.