'Uma condenação injusta é fruto de uma série de fatores', diz advogada Flávia Rahal

Diretora do Innocence Project Brasil, junto da Defensoria Pública do Ceará, conseguiu reverter a condenação de um homem por estupro, nesta semana. Ela acredita que a defesa criminal precisa começar a produzir provas, no País

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(Atualizado às 20:58, em 25 de Outubro de 2019)

O pedido de revisão criminal do Innocence Project Brasil, junto com a Defensoria Pública do Ceará, resultou em uma das maiores reviravoltas da Justiça brasileira. Após cinco anos preso e condenado a nove anos de reclusão, em 2018, por um estupro, o borracheiro Antônio Cláudio Barbosa de Castro foi solto, na última terça-feira (30), no Ceará. Diretora da ONG, a advogada Flávia Rahal concedeu entrevista ao Diário do Nordeste para falar sobre a atuação no caso, o trabalho da Instituição e a condenação de inocentes no Brasil.

O que a soltura do Antônio Cláudio representa para o Innocence Project?

Representa que nós estamos no caminho certo, que é um trabalho que precisa ser feito e visto, para que haja um novo olhar para a questão da Justiça criminal brasileira.

Como o Innocence Project trabalhou na defesa de Antônio Cláudio?

No primeiro momento, buscamos nos convencer, através de documentos e provas, da inocência dele. E produzimos nossas provas, que nos possibilitaram abrir uma nova ação e rever a condenação que ele havia sofrido. A primeira prova foi de que ele tinha sido investigado, processado e condenado como 'Maníaco da Moto', uma pessoa que abusava de forma serial de mulheres, e os abusos continuaram depois da prisão dele. A segunda prova: uma imagem captada desse 'maníaco' que demonstrava que ele tinha ao menos 1,85m, enquanto Antônio Cláudio tem 1,59m. Foi produzida uma prova pericial que demonstrava essa discrepância na altura. O terceiro: um documento que foi obtido por nós para comprovar que Antônio Cláudio não tinha uma moto vermelha no período dos fatos, e o 'maníaco' atacava mulheres sempre com uma moto vermelha.

Qual foi a maior dificuldade para o Innocence Project nesse caso?

No primeiro momento, o fato de estarmos em São Paulo e o fato aconteceu em Fortaleza. Mas nós tivemos a parceria com a Defensoria Pública do Estado, que foi extremamente eficiente. A produção de novas provas é sempre complicada, porque, na cultura jurídica brasileira, a defesa criminal não tem a mentalidade de produzir provas. A gente não tem investigadores nos escritórios de advocacia, como acontece nos Estados Unidos.

Qual a importância do combate à condenação de inocentes no Brasil?

É fundamental. Porque, quando você consegue demonstrar que a justiça criminal errou num caso concreto, as pessoas se questionam sobre a eficiência do sistema criminal brasileiro. Ao longo do tempo, na medida em que mais casos como esse são revelados, a gente consegue ter um diagnóstico de quais são as principais falhas e as principais causas do sistema criminal brasileiro, de forma a tentar mudar esse problema, ter uma ação preventiva que evite erros futuros.

O Innocence Project tem noção de quantos condenados inocentes podem existir no Brasil?

Não. Essa é uma das grandes dificuldades na nossa atuação, a inexistência de dados claros sobre a questão do erro judiciário no Brasil. Nos Estados Unidos, onde o Innocence Project já atua há 27 anos, já há um histórico que possibilita essa percepção de qual o número de pessoas e quais causas levaram as pessoas inocentes a serem condenadas.

Por que acontecem condenações injustas no País?

Em regra, uma condenação injusta é fruto de uma série de fatores. Muito difícil a existência de um erro em que se consiga apontar uma causa única. A gente pode dizer, sem sombra de dúvidas, que a Polícia poderia estar melhor estruturada para as investigações, as defesas precisariam ter mais participação na produção da prova, e há determinados procedimentos, como é o caso do reconhecimento, que precisariam ser feitos de forma muito mais objetiva e seguindo protocolos, como acontecem em outros países.

É possível apontar quais erros aconteceram na condenação de Antônio?

O caso de Antônio Cláudio tem algumas características que são muito comuns em casos de erros judiciários. Era um caso de repercussão grande em Fortaleza, porque é sempre muito assustador a existência de um 'maníaco' solto, abusando de mulheres. E tinha uma expectativa em cima dos órgãos de investigação muito grande para se chegar a um culpado. Isso faz com que haja, de fato, uma aflição para se indicar logo quem é o abusador. Normalmente, é um elemento que pode afetar uma condução mais séria da própria investigação. O que levou ao principal desvio na direção desse caso foi que uma foto de Antônio Cláudio que circulou em grupos de WhatsApp e fez com que muitas mulheres, ao ver aquela foto, interiorizassem que ele era, de fato, aquele abusador.

Quantas denúncias de condenações injustas chegaram à ONG desde a sua fundação no Brasil?

Nós tínhamos um total, até essa semana, de quase mil casos. Com a divulgação do caso de Antônio Cláudio, nós já estamos recebendo muitos outros pedidos de ajuda.

Há um perfil de preso que procura a Instituição?

Nós temos recebido muitos pedidos de ajuda de pessoas condenadas por crimes sexuais e homicídios. São os crimes nos quais há mais alegações de pessoas inocentes, presas e condenadas. O perfil da pessoa que pede ajuda é o perfil da população carcerária, basicamente. A gente tem mais pedidos de homens do que de mulheres, e normalmente de uma classe social menos favorecida.

Como vocês escolhem em que casos vão atuar?

A gente tem que respeitar uma ordem de pedidos. Há uma primeira análise de requisitos objetivos, entre os quais se já há trânsito em julgado e decisão condenatória. Se houver o preenchimento desses requisitos, a gente passa para uma segunda etapa, que é de análise do conteúdo do processo, para ver se há uma perspectiva de produção de provas novas, provas que não foram apreciadas no juízo de primeiro grau, que possa ser impactante para a reversão da condenação.

Como a ONG se sustenta?

Atualmente, nós diretores somos os responsáveis por bancar todo o trabalho da organização. Nós temos recebido algumas doações, mas precisamos que as pessoas que acreditam nesse trabalho e na importância dele passem a contribuir com o Innocence Project, para podermos crescer, ter mais estrutura e atender mais casos. Nós somos parte de uma rede, que foi fundada nos Estados Unidos. Mas a rede dá orientações, não financia nem ajuda no financiamento (das outras instituições).

Quais são os objetivos da Instituição a curto e longo prazos?

A curto prazo: ajudar o maior número de pessoas possível. Pessoas como o Antônio Cláudio e o Atercino, que são nossos dois inocentados. Fazer com que esse pesadelo - que essas pessoas vivem presas pelo que elas não cometeram - chegue logo ao fim. E, a longo prazo, é que, a partir da análise desses casos concretos, da humanização que esses casos trazem em relação à Justiça criminal brasileira, poder atuar para melhorar o Sistema (de Justiça), para ser mais efetivo e menos falho.