Um pequeno espaço na estreita Rua Santa Isabel, na Barra do Ceará, em Fortaleza, ao menos duas vezes por semana, é tomado por crianças e pré-adolescentes. No imóvel residencial de 2 andares situado em uma viela por onde não circulam carros, o térreo, há 6 anos, se tornou a sede de uma biblioteca comunitária, mantida com esforço voluntário.
Lá, a universitária Sara Vitória de Carvalho já realizou diversas atividades com um público que tem entre 6 e 12 anos de idade e compartilham a mesma realidade: ser de baixa renda, morar na periferia de Fortaleza, ter poucos equipamentos culturais disponíveis no próprio território e conviver com os dilemas da violência que amedrontam e comprometem trajetórias.
O Diário do Nordeste inicia hoje a terceira edição do projeto Terra de Sabidos e conta “histórias de vai e volta”. São experiências de alunos egressos de escolas públicas estaduais do Ceará que, ao saírem desse espaço, e ingressarem em novos campos de estudo, como o ensino superior, retornaram às suas regiões de origem, territórios, bairros, desenvolvendo alguma iniciativa de impacto social positivo e compartilhando benefícios.
Sara nasceu há duas décadas no Álvaro Weyne, bairro localizado no entorno da Barra do Ceará, e hoje reside no Cristo Redentor, também nas proximidades. Cursa Ciências Sociais na Universidade Estadual do Ceará (Uece), faz estágio docência em uma escola pública e é voluntária na Biblioteca Adianto, um espaço comunitário mantido voluntariamente na Barra do Ceará.
Nesses percursos foi construindo o entendimento sobre os limites e os potenciais desses territórios, marcados justamente pelo contraste permanente entre o determinismo da ausência de chances e a insistente e próspera criação de oportunidades. Desde muito cedo, relata, tem visto e sentido essas fronteiras.
Nessa mesma região da cidade, Sara entrou na educação formal e cursou o ensino fundamental. No ensino médio, foi para a escola pública mais antiga do Ceará, o Liceu do Ceará, no Jacarecanga, continuando o percurso pelos bairros situados da área Oeste de Fortaleza e sempre na rede pública.
Áreas essas que são muito populosas, sendo a Barra com 63,4 mil moradores o segundo bairro com mais residentes na Capital e o Cristo Redentor, com 24,5 mil, aparecendo como um dos 30 territórios com mais habitantes.
Foi muito importante para mim ter passado pelo Liceu, que foi um lugar que me moldou muito no sentido da minha identidade, da minha autonomia e também da minha visão de mundo. Porque foi a partir dali que eu me construí. Porque é um momento importante para todos os adolescentes.
Afinidades e início da trajetória
No Liceu, Sara conta que vivenciou os primeiros anos de implementação do tempo integral. A ida para essa escola, naquela etapa, era uma tentativa de “fuga” das instituições de bairro que, segundo a percepção da mãe, àquela altura, relata ela, padeciam com a violência e outros obstáculos. Percalços que Sara até hoje conhece bem.
Os deslocamentos até o Liceu favoreceram o exercício de autonomia, até em pequenas ações como “pegar ônibus”, relembra a estudante. O trajeto diário pelos bairros durou de 2017 a 2019.
Foi no Liceu que ela, hoje estudante de Licenciatura em Ciências Sociais na Uece, começou a se interessar por disciplinas como sociologia e filosofia.
Eu tinha professoras e professores que apoiavam muito a gente no sentido de dizer: 'olha, ninguém é obrigado a fazer faculdade, mas a faculdade está dentro do horizonte de vocês'. Então, eles mostraram pra gente que era possível. 'Vocês podem não fazer porque vocês não querem, mas não coloquem isso como não vou fazer porque eu não posso', eles diziam.
O sentimento de apreço pelo incentivo foi sendo amadurecido ali. E ele reverbera até hoje em ações agora desenvolvidas pela própria estudante. O acolhimento recebido produziu significados e, anos depois, repercute nas iniciativas de Sara junto a outros pequenos moradores de bairros populares na mesma região.
Atuação no próprio território
O ingresso na universidade gerou uma possibilidade, segundo Sara, de “ascensão intelectual”. E nesse processo, muitas vezes, conta ela, “a gente se sente distante do lugar que a gente nasceu. A gente se sente até culpado por estar ali galgando aquilo que eles não vão poder. Porque a minha mãe não terminou a escola nem tem vontade. Meu pai terminou, mas faltava mais do que ia”, completa.
Em 2021, no meio da pandemia de Covid uma informação compartilhada sobre a abertura de uma biblioteca comunitária, chamada “Biblioteca Adianto” a mobilizou. Na época, o equipamento, fruto da iniciativa de outro estudante de Ciências Sociais, Wesley Farpa, estava recebendo doação de livros e outras ajudas. Ela se aproximou.
Foi importante perceber a universidade como uma possibilidade, porque na minha família, não é que não apoiavam, mas não era algo que se comentava, de fazer faculdade. O meu irmão foi a primeira pessoa da família a entrar na faculdade. Ele entrou em 2019 e eu entrei em 2020. Então, fomos os primeiros. E a minha família, tirando eu, é toda negra.
A biblioteca comunitária onde Sara é voluntária funciona na Barra do Ceará, em uma espécie de sobrado. Em cima está a casa da mãe do idealizador do espaço, Dona Cila, e embaixo está a biblioteca no espaço privado cedido para esse uso.
“Eu sempre gostei muito de literatura. Minha segunda opção era a Letras-Português. Aí pensei em fazer uma leitura, um momento de leitura na biblioteca. Era tranquilo na minha cabeça. Aquela coisa tradicional, vamos ler o livro e depois a moral da história”, relata.
Mas, a diversidade de idade das crianças e as demandas típicas dessa faixa etária acabaram revelando a Sara que a leitura dirigida poderia e merecia ser incrementada. “Foi quando eu percebi que eu poderia também conversar sobre sociologia com eles”.
Conhecimento da universidade, da rua, do cotidiano vão se misturando nas atividades realizadas com as crianças da Barra do Ceará, um território de muitas possibilidades, mas reconhecidamente exposto a muitas vulnerabilidades, como a violência.
Wesley define a iniciativa como "um projeto híbrido, meio movimento social e meio instituição" cuja finalidade "canaliza a reivindicação por acesso ao livro e bibliotecas públicas na Barra do Ceará, assim como tem na área mais rica de Fortaleza".
Ele destaca que o espaço ajuda a realização de "eventos culturais, pequenas exposições, formações artísticas" e, principalmente, completa, é "um lugar seguro para as crianças ficarem enquanto as ruas seguem em sequências quase infinitas de eventos violentos".
O trabalho de Sara que, relembra ele, “chegou como doadora de livro e logo arrumou tempo e ideias de oficinas”, tem muita repercussão, principalmente a mediação de leitura. “Lembro que foi um alvoroço das crianças ao conhecê-la, de cara se identificaram. Sara também articulou com uma ruma de gente pra vim dar uma atenção pro nosso público majoritário que são as crianças”, completa.
Trabalho na comunidade
Na Biblioteca Adianto, o público infanto juvenil pode pegar livros e participar de atividades ofertadas de forma mais sistemática nas terças, quintas e sextas. Wesley explica que o foco do momento é na criação de diversas escolinhas de arte, como a de Grafite que está funcionando às terças e quintas, manhã e tarde em parceria com o projeto Napaz.
Mas, o trabalho segue árduo, diz ele, para "fazer o corre de financiar outras escolinhas" como, a de cinema, designer, artesanato e letramento.
"Para tentar financiar essa estrutura, criamos a grife Adianto Cultura para vender camisetas que levam nossos valores estampados, e o lucro poder gerar mais horas e dias da biblioteca aberta e oferecendo serviços, mas as boas vendas ainda estão por vir, o que conseguimos até agora só paga a manutenção do espaço", diz Wesley.
Sara relata que já levou discussões sobre educação inclusiva, autismo, racismo, dentre outros pontos. Também já participou da oferta de oficinas de grafite, de desenho, de autorretrato, de fanzine e fotografia.
Na rua, nas proximidades da biblioteca Sara é reconhecida. As crianças perguntam se “vai abrir hoje”, “se podem entrar”, “mexer nos livros”. As mães questionam: “vai ter projeto hoje?”. Tudo no local é voluntário. Um equipamento de incentivo à cultura e à formação mantido pelo trabalho gratuito e espontâneo de quem ciente daquela realidade em um dos territórios mais populosos da Capital, deseja melhorá-la.
Já tivemos muita parceria e contato com gente da Pedagogia e do Teatro. E eles pegavam essa faixa etária menor e faziam muitas oficinas legais. Hoje em dia a gente está com um número bem escasso de atividades.
Para participar das atividades, é preciso que as crianças estejam frequentando a escola. Todo semestre, explica Sara, o grupo de voluntários se programa. Planeja o que acha que pode ser possível de desenvolver na área e conciliar com as demandas da vida privada e do campo profissional.
No caso dela, aliar a continuidade da ação voluntária aos intervalos do serviço que garante a sua renda formal: o trabalho em uma escola pública.
Na biblioteca, reforça ela: “não tem chamada, não tem tarefa, mas não deixa de ser um espaço de educação. Aqui a gente está se educando, aprendendo, construindo”. Seguir morando e atuando nesse território na periferia de Fortaleza tem seus efeitos, pondera ela.
E por que voltar a esse lugar depois de já ter saído dele, em alguma dimensão, ao agregar conhecimento e ter novas possibilidades de atuação?
“Continuo aqui porque me dá muita força. Porque, por exemplo, a universidade é boa, mas é muito dolorosa. Pelo menos a minha experiência. E quando a gente volta para nossa casa, para os nossos espaços, para os nossos territórios, a gente vê as pessoas iguais à gente, e a gente recebe esses meninos e eles vêm com todo aquele carinho, com toda aquela atenção, você pensa: vale a pena!”, afirma.
> Para conhecer e ajudar a Biblioteca Adianto:
Rua Santa Isabel, 70 - Barra do Ceará, Fortaleza
bibliotecaadianto@gmail.com
@bibliotecaadianto