Participar de projetos que promovem o convívio social e a troca de experiências cotidianas teve um peso importante para a saúde mental tanto de Brena Guerra, 30, quanto de Luciene Moura Fernandes, 67, cada uma em seu momento de vida específico. Para lidar com a falta de aceitação na família ou se dedicar a diferentes atividades após a aposentadoria, a sociabilidade transformou o dia a dia delas, fortalecendo a autoestima e ajudando a atravessar momentos difíceis.
Cada etapa da vida é acompanhada por desafios que podem impactar a saúde mental. Enquanto, na infância, a criança ainda é mais dependente da família e na adolescência precisa elaborar uma série de mudanças, a fase adulta vem repleta de cobranças e é seguida pela velhice, com perdas e encerramento de ciclos, como o do trabalho.
Mas essas fases não são iguais para todas e têm especificidades que variam conforme o contexto socioeconômico. “Essa interseccionalidade dá uma visão mais ampliada da diminuição da saúde mental e de maior possibilidade de adoecimento”, explica Eliany Nazaré Oliveira, professora do curso de Enfermagem da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA) com pós-doutorado na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto.
Essa é a quarta edição do especial jornalístico do Diário do Nordeste "Nenhuma a Menos", uma série de 10 reportagens — que integra o "Projeto Elas" —, para discutir atitudes, costumes, tradições, aspectos biológicos e comportamentos que impactam na saúde mental de meninas e mulheres, visando debater formas de buscar seu bem-estar, entendendo que essa é uma demanda coletiva, de toda a sociedade, e que atravessa questões que vão além de doenças, pois ultrapassam temas como saúde e envolvem educação, cultura, política e economia.
Infância e Adolescência
Contrária à visão do adoecimento mental apenas do ponto de vista dos sintomas e o tempo de duração deles, a psicóloga Vládia Jucá, professora associada do departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), prefere falar em sofrimento psíquico. “[Essa categoria] destaca não os sintomas em si, mas vai tomá-los como indicadores de algo que está acontecendo na relação entre aquele sujeito em particular e o seu meio”, explica.
Ela cita como exemplo um jovem que mora em uma área violenta e sente ansiedade ao andar na rua. “Essas crises não são uma disfunção neurobiológica que veio com aquele sujeito, elas são muito bem contextualizadas. Há um sofrimento que é social e psíquico ao mesmo tempo, agudizado por um estado de grande desamparo. […] Estamos falando de crianças, mas elas fazem parte de uma trama muito maior.”
Hoje, é muito pouco [apenas] pensar em cuidar e tratar das crianças e adolescentes que já adoeceram. Temos que pensar no eixo da promoção da saúde mental, cuidar antes mesmo que elas adoeçam. [Para] aqueles que já estão com sofrimento, que não se agrave.
Dois pontos que impactam as meninas, segundo a professora, são a violência e a necessidade de se tornarem cuidadoras muito cedo. “Não necessariamente [ela] tem que cuidar do irmão, do primo, mas tem que estar atenta ao que se passa com seus pais e muitas vezes não os incomodar com seu próprio sofrimento, porque eles também estão adoecidos.”
Na infância, especificamente, ela destaca a função estruturante do brincar e alerta sobre a perda de espaço para isso na atualidade. “No seu lugar, tem entrado a internet, o acesso a jogos e a conteúdos eletrônicos e uma estrutura escolar que, talvez, esteja um tanto quanto defasada”, explica.
A adolescência, por sua vez, é “um tempo de travessia”. A menina passa a se distanciar mais da família, no sentido de “se reconhecer, construir para si um novo lugar no campo social”. Questões relacionadas à construção da orientação sexual e da identidade de gênero também têm implicações nesse período.
Nesse cenário, é importante “fazer valer” as políticas públicas existentes e criar espaços de escuta e acolhimento para criar estratégias de cuidado, defende a professora. Também é necessário promover formações contínuas para capacitar professores para identificar sinais de adoecimento, abordar, acolher e encaminhar essas meninas, acrescenta Eliany Nazaré Oliveira.
“Hoje, a sensação é de que a família não está dando conta, porque também está precisando de algum amparo, a escola não está dando conta e está indo tudo para a conta da saúde mental, [com] diagnóstico em uma pegada da medicalização, não no sentido de uma análise do que aquele sofrimento revela sobre as relações para podermos intervir em diálogo a Educação, com o SUAS [Sistema Único de Assistência Social]. Não tem cuidado em saúde mental de criança e adolescentes sem abertura para fazer esse trabalho intersetorial”, analisa Vládia Jucá.
“Precisava encontrar outras pessoas como eu"
A vida da estudante universitária e artista Brena Guerra, 30, foi atravessada de diferentes maneiras pelo Movimento Saúde Mental, no bairro Bom Jardim, que oferta serviços de acolhida, escuta e atendimento às famílias da comunidade. Em momentos difíceis, como a perda da mãe, foi lá que encontrou acolhimento. Também foi onde teve o primeiro contato com a música e com o teatro.
Em meio ao processo de assumir a orientação sexual, aos 19 anos, também encontrou apoio no projeto. Sem uma boa recepção na família, ela começou a consumir bebidas alcoólicas e entrou em depressão. “Tinha tido uma discussão em casa, cheguei a me machucar feio nos braços. Passei por aquele acolhimento, contei o que estava acontecendo e o movimento me deu suporte”, lembra.
Na época, ela estava desempregada e conseguiu um estágio no projeto, começando a ter uma renda para poder sair de casa. Essa decisão, segundo a estudante, ajudou a melhorar o relacionamento com a família. Para além do financeiro, esse processo teve outros impactos importantes para Brena, como o reconhecimento do próprio trabalho.
“Nesse tempo que trabalhei com ele, rolou uma premiação. Aquilo foi um boom de autoestima para mim. Aquela minha ferida de não ser aceita foi curada naquele momento. Eu me achava indigna de amor, de respeito, e ali eu passei a conviver com outras pessoas LGBT, a ver outros trabalhos de pessoas LGBT, e comecei a me inspirar. Eu precisava encontrar outras pessoas como eu”, lembra.
Hoje eu sou a mulher mais confiante, inclusive na construção da minha orientação sexual. Procurei acolhimento [no projeto] e tinha terapeutas, psicólogos, todos os profissionais de saúde mental que conversaram comigo e abriram os meus olhos para princípios: para onde eu queria seguir, qual carreira eu queria seguir, como usar a minha arte, a minha música, o meu cinema, para a minha autoestima.
Atuando com audiovisual e música, hoje ela celebra a participação em festivais com as obras autorais, assim como as chances que já teve de sair do Ceará rumo a outros estados e países com o próprio trabalho. “Eu devo muito todos os meus prêmios ao que aprendi dentro do Movimento”, destaca.
Vida adulta e velhice
Conforme essa mulher vai envelhecendo, aumentam ainda mais as cobranças. Culturalmente, exige-se o papel de mãe, de mulher e de trabalhadora. Essas imposições causam sobrecargas e podem levar a sofrimento psíquico. A professora Eliany Nazaré Oliveira percebe esse cenário no ambiente universitário.
“É aquela coisa: ‘tenho que dar o melhor de mim porque sou mãe e esse papel é exigido a mim. Ao mesmo tempo, tenho que ser muito boa no meu trabalho, tenho que publicar artigos, tenho que que fazer meu doutorado. Vemos muitas colegas adoecendo mentalmente, com crise de ansiedade, acompanhamento com psiquiatra e introdução de medicações”, relata.
Apesar de algumas pessoas — sejam mulheres ou homens — terem predisposição ao desenvolvimento de transtornos mentais, a professora explica que as relações em que elas estão inseridas, se forem saudáveis, podem evitar esse quadro. “O que que vemos na área da saúde mental é que esse externo, essas relações sociais e culturais, são fortes determinantes desse adoecimento”, explica.
Alguns anos mais tarde, a docente aponta o impacto da saída dos filhos de casa e de uma aposentadoria “drástica”, sem um plano. “Muitas vezes, ela perde o parceiro de anos, os filhos saem de casa, essas visitas dos filhos são esporádicas. São vários fatores que vão contribuir para a diminuição da saúde mental dessas mulheres na terceira idade.”
“Nunca mais tive uma tristeza"
A servidora pública aposentada Luciene Moura Fernandes, 67, não passa despercebida pelos corredores do Sesc Fortaleza. Conversa com um e com outro, sorri e se diverte. Ela já fazia exercícios físicos na instituição e tinha o plano de frequentar as atividades do Trabalho Social com Idosos (TSI) quando deixasse o trabalho. Em 2020, inscreveu-se e compareceu a alguns encontros presenciais, até que começou a pandemia de Covid-19.
Os dois anos de encontros virtuais foram difíceis. Ela perdeu amigos para a doença, viu o marido perder a renda, precisou fazer tratamento para ansiedade, teve psoríase e não conseguia se concentrar em leituras.
“Eu fiquei mal, perdi 6 kg em um mês, fiquei muito seca só de chorar. Eu estava no celular e um colega meu disse: ‘Amiga, estou aqui fazendo o teste de Covid’, na quinta ou sexta-feira. No domingo, a esposa botava [nas redes sociais] que ele tinha morrido. Perdi dois amigos da hidroginástica. Do andar onde trabalhei foram cinco. Ao todo, foram 19 amigos. Isso foi muito, muito difícil”, lembra.
O retorno ao presencial, após quatro doses da vacina contra a doença, foi como um renascimento. Da terapia ocupacional a bailes, sessões de cinema, piqueniques e visitas a museus: ela participa de tudo que for possível.
Nunca mais na minha vida eu chorei, nunca mais tive uma tristeza, deixei de tomar remédio em 2022, quando vim para cá. O médico já tinha começado a desmamar e não sinto mais falta.
Luciene ainda faz pilates, frequenta clubes de leitura, é atuante no sindicato da categoria e participa, desde nova, de manifestações. “Ano passado, eu fui para Marcha das Margaridas [ato protagonizado por mulheres trabalhadoras rurais], em Brasília, andamos 6 km. E eu não participo de mais projeto daqui porque também tenho outros compromissos e não gosto de faltar”, conta.
As mulheres são as que mais participam das atividades do TSI, e o superintendente de Ações Integradas do Sistema Fecomércio Ceará e diretor regional do Sesc Ceará, Henrique Javi, destaca que uma das funções principais do projeto é promover o vínculo e o relacionamento entre as integrantes.
“Estudos muito recente demonstram que a manutenção de vínculos e o relacionamento social são fundamentais para manter esse estado saudável, sobretudo com a pessoa idosa”, afirma o gestor.
O objetivo é que as atividades tenham uma função mais preventiva do que terapêutica — apesar de também serem oferecidos serviços com psicólogos, fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais. “Tem toda uma estrutura voltada para a recuperação, mas o nosso foco principal é garantir esse estado permanente de prevenção e qualificação da saúde mental e da qualidade de vida”, afirma.
Outra preocupação, segundo Javi, é promover a autonomia da pessoa idosa, que tem repercussão inclusive nos vínculos familiares. “Isso dá mais estímulo para a família também olhar para essa mulher como uma pessoa autônoma, capaz, segura e competente”, finaliza.