Varíola: há 144 anos Fortaleza sofria com mortes e lutava contra ‘fake news’ para aplicar a vacina

A doença, já erradicada no mundo, não é a mesma que a varíola dos macacos. Ela provocou mil mortes em um dia. Na época, boatos prejudicaram a imunização.

Nas últimas semanas, o mundo voltou a atenção para os casos da varíola dos macacos em países fora da África, área na qual a doença é endêmica. A Organização Mundial da Saúde (OMS) monitora a situação. A enfermidade não foi registrada no Brasil. Mas, no país, há mais de 100 anos, a população foi drasticamente afetada pela varíola humana (que não deve ser confundida com a dos macacos).

Em Fortaleza, 1878, foi um dos anos mais cruéis devido à doença. Mais de 1.000 pessoas morreram em um único dia. A varíola humana, felizmente, foi erradicada no Mundo há 42 anos e não representa mais ameaça. 

No decorrer dos séculos, o mundo vivenciou sucessivas epidemias de varíola humana.

No Ceará, a história oficial registra que foram diversos o momento de alta incidência da doença, sendo os anos 1877 a 1880 - período em que também ocorreu severa seca - um dos mais difíceis. 

Em 1904, o farmacêutico Rodolfo Teófilo, que testemunhou os estragos provocados pela doença em anos anteriores e registrou no livro “Varíola e vacinação no Ceará”, e apontou, dentre outros, que, em 2 meses, Fortaleza perdeu 27.378 para a varíola humana, do total de uma população, à época, de 130 mil pessoas. 

O governo, diz a obra, “vendo a varíola tomar proporções assombrosas contratou médicos, mandou construir enfermarias, mas tudo isso era insuficiente”. Em novembro daquele ano, eram 40 mil pessoas com varíola na Capital.

Em dezembro, no dia 10, segundo o livro, o cemitério da Lagoa Funda recebeu 1.004 cadáveres. O episódio é conhecido na história como o “Dia dos Mil Mortos”. No obituário daquele mês, informa o livro, foram registrados 15.352 falecimentos em Fortaleza; sendo 14.491 de varíola e 861 de “outras moléstias”. 

Para combater o mal, já existia uma proteção: a vacina. O pesquisador inglês Edward Jenner, em 1796, havia desenvolvido o primeiro imunizante registrado no mundo, justamente contra a varíola. Conforme o Instituto Butantan, as ações de vacinação, a partir de 1859 começaram a ser introduzidas no Brasil. 

Esforço para garantir a vacinação

Em Fortaleza, diante da epidemia sem precedentes de varíola, houve esforço por parte de algumas figuras públicas ligadas à saúde para garantir a imunização contra a doença. Rodolfo Teófilo mobilizou uma série de iniciativas para assegurar a ampliação da imunização e enfrentou algumas autoridades nesse processo.  


 
O farmacêutico chegou a produzir e distribuir as vacinas na Capital e no Interior. E isso gerou reação de alguns setores da elite que se refletiram em ataques à eficácia do antídoto. 

Folhetins da época chegaram a publicar textos que indicavam que uma criança vacinada por Rodolfo Teófilo contra a varíola em um dia de manhã, havia morrido na tarde do mesmo dia.
 
Manifestações apócrifas, semelhantes às atuais fake news também atacavam a segurança e eficácia do imunizante, que já era aplicado em outros cantos do território brasileiro. 

Em 1907, o farmacêutico recebeu a aprovação da vacina pelo Instituto de Patologia Experimental de Manguinhos, no Rio de Janeiro, o Instituto Oswaldo Cruz (IOC). 

Na obra publicada em 1909, “Climatologia, Epidemias e Endemias do Ceará”, o médico Barão de Studart, relata que “tenaz e invencível obstáculo foi a repugnância do povo em aceitar o preservativo (vacina)”. 

Pregavam os padres sobre suas vantagens, apregoavam os médicos sua necessidade; ia-se até aos meios de coacção, às medidas de rigor; tudo improfícuo; não queriam introduzir a peste no corpo e nisto ficavam. Para demonstrar o limitado número dos que se submeteram à operação tão simples e tão salvadora basta citar entre muitos o seguinte facto: no mês de novembro entraram para o Lazareto de S. Sebastião 875 variolosos e desses eram vacinados apenas 32. E nenhum dos vacinados sucumbiu.
Barão de Studart
Livro Climatologia, Epidemias e Endemias do Ceará

A vacinação já era prevista no Brasil, mas a Lei Federal 1.261 de 1909 tornou a vacinação e a revacinação contra a varíola obrigatórias “em toda a República”. A imunização, diz a lei, deveria ser aplicada até o sexto mês de idade. Já a revacinação deveria ser feita até 7 anos após a vacinação. 

O que é a varíola humana?

Segundo a Fiocruz, a varíola humana era uma doença infecciosa grave causada pelo vírus chamado Orthopoxvirus variolae. A transmissão ocorria de pessoa para pessoa por meio das vias respiratórias. 

Após a contaminação ele se estabelecia na garganta e nas fossas nasais e causava febre alta, mal estar, dor de cabeça, dor nas costas, dentre outros. Dias depois, assumia a forma mais severa com erupções avermelhadas na garganta, boca, rosto e depois se espalharam pelo corpo.

Com o tempo, as erupções evoluíam e se transformavam em pequenas bolhas cheias de pus, que provocavam coceira intensa e dor. 

O microbiologista e imunologista, coordenador da Unidade de Apoio ao Diagnóstico da Covid-19 da Fiocruz Ceará, Eduardo Ruback, explica que o vírus da varíola humana não tem mais circulação no mundo. 

“Porém, existem amostras do vírus original guardadas em segurança máxima. A única forma dela voltar seria através de ações de bioterrorismo e afetaria diretamente a população não vacinada”.
Eduardo Ruback
Microbiologista e imunologista

Ele acrescenta que “se surgir alguma nova forma varíola humana, ela vai ser diferente da original”.

Enfrentamento a varíola

A transmissão da varíola ocorria de pessoa para pessoa, por meio das vias respiratórias, ou através do contato com objetos contaminados. 

Em sua forma mais grave, a doença provocava erupções na garganta, rosto e outros locais do corpo. Elas evoluíam para pequenas bolhas com pus, provocando coceira intensa e dor. Não existia tratamento efetivo contra a varíola, e a vacina combinada a outras estratégias ajudou a erradicar a doença.  

Em abril de 1971, 19 moradores do bairro da Penha, na cidade do Rio de Janeiro, foram os últimos a terem varíola no Brasil. No mundo, o último caso de transmissão natural foi identificado em outubro de 1977, na Somália. Em 8 de maio de 1980, a OMS reconheceu a erradicação da varíola no mundo.

A vacinação foi fundamental para garantir a erradicação da doença. O microbiologista e imunologista, Eduardo Ruback, explica que com os casos “se percebeu que a doença poderia ser evitada utilizando um outro vírus da mesma família, originada de bovinos, que não desenvolvia os casos graves”. 

O método foi então utilizado como base para vacina que “em uma campanha mundial levou a erradicação da versão humana da doença”, completa ele.

O combate da varíola, diz, “foi um exemplo de esforço combinado, desde o desenvolvimento até as campanhas de vacinação em massa. O modelo é basicamente o mesmo utilizado atualmente no PNI do Brasil, e foi um grande salto na existência da medicina preventiva”.

Diferença entre varíola humana e a dos macacos

Com o registro da varíola dos macacos fora da África, território na qual a doença é endêmica, surgiram preocupações sobre se há semelhanças entre ela e a enfermidade erradicada.  

A virologista  e professora do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Clarissa Damaso, explica que esse possível retorno é “um receio geral na humanidade”.

Mas, reforça, ele só existe se o vírus escapar dos laboratórios onde ainda são guardados em segurança máxima ou se houver algum estoque clandestino para ser usado como arma de bioterrorismo. 

Ela explica que os vírus causadores da varíola são diferentes, mas “são da mesma família e que causam sintomatologia parecida”. 

O aspecto clínico das lesões, a maneira como elas aparecem são bem parecidas. Só que a varíola (humana) tinha uma taxa de letalidade de 30% a 40%, que é altíssima, enquanto a varíola do macaco, na África, tem taxa de letalidade de 1%, para esta cepa circulando agora. Na Europa, até agora, não houve nenhum óbito. Então tá sendo um quadro brando.
Clarissa Damaso
Virologista e professora do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da UFRJ

A virologista destaca que a maneira de combater a varíola do macaco é exatamente como se combateu a varíola humana. “Sabemos como combater, a vacina é exatamente a mesma, protege contra todos os vírus que são do subgrupo. Agora ela não existe mais no Brasil licenciada. A gente precisa comprar no exterior e licenciar aqui”. 

Além disso, garante, "a varíola foi combatida com vacina e também com programa eficaz que traçava os contatos e isolava as pessoas. A transmissão é via contato com a pele, lesões, secreções orais e respiratórias. Precisa haver isolamento até as crostas secarem e caírem. Isolando e vacinando conseguimos erradicar a varíola”.