O Ministério da Saúde (MS) espera incorporar a vacina contra a dengue ao Sistema Único de Saúde (SUS) ainda em 2023. Chamada Qdenga e produzida pela japonesa Takeda Pharma, o imunizante está em avaliação pela Comissão Nacional de Incorporações de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec). Especialistas ouvidos pelo Diário do Nordeste avaliam de forma positiva a inclusão da vacina no Programa Nacional de Imunizações (PNI) devido ao problema de saúde pública que a doença representa. Em clínicas de vacinação particulares de Fortaleza, o imunizante custa entre R$ 450 e R$ 490.
Como as demais recomendações da Comissão, a proposta de incorporação da Qdenga ao SUS foi submetida a uma consulta pública, que está no ar desde a quinta-feira (7) e segue aberta até 18 de dezembro. Normalmente, esse prazo é de 20 dias, mas o processo foi encurtado devido à projeção epidemiológica para o verão, com possibilidade de aumento de casos da doença. É possível participar da consulta pública no site da Conitec por meio do formulário de experiência e opinião ou do formulário técnico-científico.
A vacina Qdenga foi aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em março de 2023 para aplicação em crianças a partir de quatro anos, adolescentes e adultos até 60 anos, independentemente de exposição prévia à dengue. A vacinação segue um esquema de duas doses, com intervalo de três meses entre elas.
A avaliação inicial da Conitec foi favorável à incorporação do imunizante para localidades e públicos prioritários, que devem ser definidos pela estratégia do PNI segundo as regiões de maior incidência e transmissão de dengue e as faixas etárias de maior risco de agravamento da doença. De acordo com o órgão, a restrição de público considera a capacidade de fornecimento de doses por parte da fabricante.
A recomendação inicial também está condicionada a uma proposta de redução de preço pela fabricante, compatível com a sustentabilidade do PNI. Apesar do desconto oferecido, o Governo Federal considerou o valor por dose alto, em comparação aos demais imunizantes já ofertados. O preço original era de R$ 170 por dose e o novo valor foi de R$ 139,40 por dose, sem impostos. “Nesse preço, o valor é duas vezes maior que as vacinas mais caras incluídas no programa”, afirmou o Ministério da Saúde, em nota.
Para a presidente da Sociedade Cearense de Infectologia e professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC), Lisandra Serra Damasceno, o uso da Qdenga no SUS é “pertinente” devido ao problema de saúde pública que a dengue representa, acometendo mais de 1 milhão de pessoas durante o ano.
Acho a avaliação da Conitec muito pertinente, uma vez que dengue é um problema de saúde pública importante. Há mais de 40 anos o Brasil sofre com essas epidemias recorrentes de dengue, com muitas pessoas acometidas pelo vírus, e até o momento não tínhamos uma vacina que pudesse ser eficaz tanto no desenvolvimento da infecção como na proteção para hospitalizações e casos de dengue grave.
Dados divulgados pelo Ministério da Saúde no início de dezembro apontam que os casos de dengue em todo o Brasil aumentaram 15,8% em 2023, em comparação ao ano anterior. De 1,3 milhão em 2022, as ocorrências passaram para 1,6 milhão neste ano. A taxa de letalidade da doença foi de 0,07% nos dois anos, com 1.053 mortes confirmadas em 2023 e 999 em 2022.
No Ceará, apesar de um cenário de baixa transmissão, houve uma média de 1.270 casos confirmados a cada mês de 2023, de acordo com um boletim epidemiológico produzido pela Secretaria da Saúde do Estado (Sesa). Até o início de dezembro, foram registrados 22 casos de dengue grave e 8 mortes pela doença em todo o ano.
O infectologista Guilherme Henn, membro da diretoria da Sociedade Cearense de Infectologia, se mostra otimista quanto à possibilidade de a vacina ser disponibilizada no sistema público. “Há várias décadas, a dengue é um grave problema de saúde pública no Brasil. Entendo que a incorporação de uma vacina seria bastante benéfico para o controle da doença, já que, com as medidas ‘ambientais’ — aquelas recomendações de não deixar material acumulado em casa, água parada — não têm sido suficientes para conter as epidemias de dengue”, afirma.
TECNOLOGIA UTILIZADA NA VACINA
A Qdenga é uma vacina feita a partir da tecnologia de vírus atenuado. Ele é utilizado vivo, mas passa por processos em laboratório para ser “enfraquecido”. “Uma vez estando dentro de um imunizante, esse vírus não consegue causar doença em pessoas que são imunocompetentes — ou seja, aquelas pessoas que não têm problemas que afetam a sua imunidade”, explica Lisandra Damasceno.
O vírus causador da dengue tem quatro sorotipos diferentes (DENV-1, DENV-2, DENV-3 e DENV-4). A Qdenga utiliza como base o sorotipo 2, que serviu como um “protótipo” para a produção dos outros três sorotipos por recombinação genética. Por isso ela é uma vacina tetravalente, que protege contra os quatro sorotipos.
“É importante entender que a vacina usa a ‘casca’ do sorotipo 2, mas tem antígenos de todos os quatro sorotipos do vírus da dengue. É um vírus enfraquecido que expressa, na sua superfície, pedacinhos dos quatro sorotipos. Isso faz com que o sistema imunológico os reconheça e produza anticorpos protetores contra os quatro sorotipos”, explica Guilherme Henn.
SEGURANÇA E EFICÁCIA
Aspecto essencial na avaliação de imunizantes, os efeitos adversos provocados pela Qdenga foram considerados leves. Entre eles, foram registradas reações como dor no local da aplicação, vermelhidão, dor de cabeça e febre. “Em relação aos eventos adversos graves, foram pouquíssimos (registros). O estudo identificou seis óbitos durante o processo de investigação, mas nenhum foi relacionado à imunização. É um estudo que envolveu mais de 28 mil participantes, então é robusto”, afirma a professora.
Ela explica que os estudos também apontam bons resultados quanto à proteção oferecida pelo imunizante. A vacina mostrou eficácia de cerca de 80% contra o desenvolvimento da doença, de 90% para hospitalização e de aproximadamente 86% para as formas graves da dengue.
“Essa proteção (contra a doença) cai ao longo dos anos durante o seguimento do estudo. Verificou-se que, pelo quarto ano, a eficácia contra o desenvolvimento de doença vai para 62%, aproximadamente, mas ela permanece eficaz em relação à hospitalização. É uma vacina realmente bastante eficaz e segura”, aponta Lisandra Damasceno.
Mas há públicos que não podem receber a aplicação da vacina, que é contraindicada para pessoas imunodeprimidas ou mulheres que estejam grávidas ou amamentando. “O vírus vivo pode acabar causando a doença em quem tem o sistema imunológico comprometido”, explica Guilherme Henn.
COMO UM MEDICAMENTO É INCORPORADO AO SUS
Antes de chegarem ao Sistema Único de Saúde, medicamentos e vacinas devem ser aprovados pela Anvisa, que avalia a eficácia e a segurança do produto para autorizar a comercialização no Brasil. Esses produtos também devem passar pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED) para a definição de preços.
Os valores estabelecidos pela CMED variam de acordo com o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), que muda conforme o estado brasileiro. No Ceará, onde a taxa é de 18%, a Câmara definiu o Preço Máximo ao Consumidor (PMC) de R$ 374,94 para a Qdenga. Mas o preço final é mais alto porque esse valor definido pela CMED é apenas relacionado ao produto.
“Nesse valor, não estão incluídos os custos do profissional habilitado para fazer a vacina, os custos com conservação, os custos de rede de frios. Esse valor é como se eu estivesse indo ao balcão da farmácia pegar o medicamento, mas com vacinas é diferente, tem várias coisas envolvidas. É um serviço que precisa de profissional especializado”, explica a médica Vanuza Chagas, pediatra e diretora da Previne Vacinas, onde a vacina custa R$ 480.
Para chegarem à rede pública, as tecnologias também devem ser avaliadas pela Conitec, órgão colegiado que assessora o Ministério da Saúde no processo de incorporação, exclusão ou alteração de medicamentos, procedimentos e equipamentos ofertados no SUS. Nessa etapa, a análise considera a eficácia (atuação no contexto de um estudo clínico), a segurança (se causa ou não malefícios à saúde) e a efetividade (como age no contexto real).
É feita uma comparação com os demais tratamentos ofertados no SUS e é levado em consideração o provável impacto social, legal, ético e econômico da possível incorporação. Além dos dados científicos, a Conitec analisa as contribuições recebidas nas consultas públicas. Todo o processo tem prazo de 180 dias e pode ser prorrogado por mais 90.