A bebida alcoólica entrou na vida de Ariadne* (nome fictício) antes de ela nascer. Pai, tio e irmão eram reféns do alcoolismo. O alerta não foi suficiente: por “genética ou destino”, ela também sucumbiu ao vício, e precisou buscar ajuda, em plena pandemia, para largá-lo.
José*, 70, conheceu o cheiro e o gosto forte da cachaça aos 13 anos, e já nessa época via “toda dose levar a um porre”. Não tinha controle. Aos 24, conseguiu esticar o braço para fora do “fundo do poço” e alcançar ajuda. Vive agarrado a ela até hoje, 4 décadas depois.
Neste 20 de fevereiro, Dia Nacional de Combate às Drogas e ao Alcoolismo, os dois cearenses narram aqui as duras jornadas que percorreram até a sobriedade – Ariadne está sem beber há 1 e 6 meses; José, há mais de 40 anos.
No Ceará, todo ano, centenas de pessoas recorrem à internação para conseguirem se abster dos vícios. Só na pandemia, em 2020 e 2021, foram 3.139 hospitalizações no Estado por transtornos mentais ou comportamentais ligados ao consumo de álcool e múltiplas drogas ou psicoativos.
Se somados os transtornos gerados pelo uso de álcool, fumo e outras drogas, o número de internações aumentou 59% em 2020, na pandemia, se comparado a 2019, ano pré-pandêmico. Já de 2020 para 2021, houve queda de 21% nas hospitalizações.
Nos últimos dois anos, pelo menos 703 cearenses morreram por causas ligadas ao uso de álcool e múltiplas drogas, e outros 214 em decorrência do fumo. Os dados são do Ministério da Saúde, coletados pelo Diário do Nordeste.
“Viver sóbria é ter liberdade”
Ao tomar consciência de que passou, aos poucos, de 3 para 5 cervejas e de 1 para todos os dias da semana bebendo, Ariadne levou um baque. Foram vários “hoje não bebo mais” até, de fato, procurar ajuda nas reuniões do Alcoólicos Anônimos (AA) em Fortaleza.
“Chegou um ponto em que eu não estava mais conseguindo parar, e continuava aumentando as doses. Sempre no outro dia, com a cara inchada, eu dizia ‘hoje não bebo mais’. Ressaca moral é a pior, é a que mais derruba”, relembra.
Para parar de beber, Ariadne pensou na filha. Percebeu que ainda tinha “muita vida pela frente” e lembrou de que, apesar do apoio da família, só ela mesma poderia dar o primeiro passo para se tirar do vício, porque “estava viciada e o cérebro precisava do álcool”.
A bebida mascara seus problemas. Beber, pra mim, era bom. Mas o alcoolismo é uma doença que antes de matar desmoraliza. O alcoólatra é o bobo da corte da turma. E eu não quis mais isso pra mim.
Em 2020, durante o isolamento social, a professora ingressou no AA, cujas reuniões passaram a ser online. “Já participei em outros estados e até países. Pra mim, está dando certo. Um dia de cada vez, eu tenho conseguido”, comemora.
“Em 1 ano e 6 meses, não tive nenhuma recaída. Estou sóbria. É muito bom. É uma liberdade que você tem, um controle de você, do seu corpo. É muito bom”, acrescenta Aridane, que se ocupa, agora, de bichos, plantas e esporádicas latinhas de refrigerante.
“Tenho 4 filhos que nunca me viram bêbado”
A história de José com o AA é mais longa: já faz 44 anos que frequenta “a irmandade”, e hoje até organiza reuniões. Ajudar outras pessoas, segundo ele, “é uma forma de se ajudar”, diante da consciência de que “o alcoolismo é uma doença e não tem cura”.
“Passe o tempo que for, você só pode se manter na sobriedade. É um programa do viver o hoje: todo dia você tem a chance de se transformar”, pontua o aposentado, membro do AA desde 1976, quando procurou ajuda para se livrar do vício.
Eu bebia no final de semana, e na segunda-feira não tinha noção do que tinha acontecido. Eu me maltratava. A cachaça me levava pra um canto que eu não queria ir.
Para ele, o principal combustível para parar de beber foi a vontade, e o lucro se expressa hoje, “numa vida útil e saudável” que se orgulha de ter. “Minha vida se transformou. Casei e tenho 4 filhos que nunca me viram bêbado”, ilustra.
Fortaleza tem, atualmente, 175 grupos do AA, mas só 120 foram reabertos após a pandemia, segundo José. Não é possível dizer quantos membros entraram durante a crise sanitária, mas ele garante que muitos aproveitaram “o online” para conhecer a experiência.
Quem se interessar por participar dos encontros pode entrar em contato pelo telefone (85) 3231-2437 (também é WhatsApp), que atende em horário comercial, ou acessar www.aaceara.org.br para buscar mais informações. Já no www.aa.org.br há reuniões online diárias às 20h.
Tratamento médico é indispensável
Um dos equipamentos públicos mais importantes para quem busca a desintoxicação em Fortaleza é o Hospital de Saúde Mental de Messejana (HSM). Pessoas com dependência de álcool ou outras drogas e que querem cessar o uso podem procurar a unidade e permanecer por até 15 dias no processo de “limpeza do organismo”.
“A internação é de caráter voluntário, a pessoa precisa querer se internar e desintoxicar. Ela fica em tempo integral, geralmente com algum familiar, para ter um apoio, e terá atividades com uma equipe multidisciplinar”, explica Arão Zvi Pliacekos, psiquiatra do HSM.
O médico alerta que o acompanhamento profissional especializado é indispensável para lidar com a abstinência da forma mais estável e saudável possível.
A pessoa inicia fazendo o uso abusivo episódico. Depois, o recorrente. E quando se conscientiza, já está dependente, sendo difícil conseguir ficar em abstinência se não for preparado por uma equipe multidisciplinar qualificada.
O psiquiatra lembra ainda que há diferenças entre o que se define por uso abusivo de álcool, que é o consumo intencional e sem moderação; e o alcoolismo propriamente dito, que é a doença, a dependência.
“O limite é aceitável para consumo de álcool, fumo e drogas é o episódico moderado. A hora de se preocupar é quando a pessoa apresenta sofrimento psíquico ou físico decorrente do uso. Não adianta querer abandonar o vício: é preciso acreditar e aceitar o tratamento.”
é o tempo médio que pacientes já desintoxicados passam frequentando o serviço Elo de Vida, do Hospital de Saúde Mental, para se fortalecerem.
Atendimento nos CAPS
Além do HSM, alcoólatras e dependentes químicos podem buscar ajuda nos 7 Centros de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (Caps AD) de Fortaleza, se forem maiores de idade, ou nos 2 Caps infantis, caso tenham 18 anos incompletos.
De acordo com a Secretaria Municipal de Saúde (SMS), as unidades são porta aberta, e encaminham os usuários para outros serviços de saúde física e mental necessários a cada caso.
Em 2020, os Caps AD da capital cearense somaram o maior número de atendimentos dos últimos 3 anos, com quase 106 mil registros.
A gestão municipal da Saúde destaca, ainda, que “dispõe de uma rede de apoio à internação com 25 leitos infantojuvenis na Sociedade de Assistência e Proteção à Infância de Fortaleza (Sopai) e 12 leitos para desintoxicação na Santa Casa de Misericórdia”.
Onde buscar ajuda
- Alcoólicos Anônimos (AA). Telefone/WhatsApp: (85) 3231-2437. Site: www.aaceara.org.br ou www.aa.org.br
- Hospital de Saúde Mental de Messejana – Rua Vicente Nobre Macêdo, S/N. Telefone: (85) 3101.4350
CAPS Álcool e Drogas de Fortaleza
- CAPS AD Dr. Airton Monte – Av. Monsenhor Hélio Campos, 138, bairro Cristo Redentor. Telefone: (85) 3433.9513
- CAPS AD Cidade 2000 – Rua Giselda Cysne, s/n (próximo ao Posto de Saúde Rigoberto Romero). Telefone: (85) 3105.1625 / 3452.2451
- CAPS AD Centro – Rua Dona Leopoldina, 08. Telefone: (85) 3223.6388
- CAPS AD Rodolfo Teófilo – Rua Frei Marcelino, 1191. Telefone: (85) 3105.3420 / 3105.3722
- CAPS AD Alto da Coruja – Rua Betel, 1826, bairro Itaperi. Telefone: (85) 3493.5538
- CAPS AD Granja Portugal – Rua Antônio Nery, S/N. Telefones: (85) 3105.1023 / 3488.5717
- CAPS AD Casa da Liberdade – Rua Salvador Correia de Sá, 1296, bairro Sapiranga. Telefones: (85) 3273.5226 / 3278.7008