Transformação de imóveis ociosos em Fortaleza indica soluções para os vazios urbanos; veja exemplos

“Era um lugar morto, agora é cheio de vida”. A atendente de loja Valdilene Coutinho, 49 anos, é categórica ao definir o Parque Rachel de Queiroz, localizado no bairro Presidente Kennedy, na zona Oeste de Fortaleza. Hoje um dos exemplos de espaços ociosos que foram requalificados na capital, o equipamento já foi um símbolo dos chamados vazios urbanos.

Esse tipo de transformação visa dar nova função a imóveis ociosos, sejam terrenos ou edificações. A cidade acumula lotes vazios, galpões, fábricas e construções abandonadas e prédios antigos inutilizados, onde a população vive a expectativa por espaços que conversem com as necessidades do entorno.

Diante desse cenário, edificações subutilizadas que tiveram o uso transformado também são realidade em Fortaleza. Para além de exemplos, esses pontos indicam soluções reais para a ocupação positiva do que antes era apenas vazio.

Além de encarar as lacunas na ocupação do âmbito urbano, alterar a dinâmica desses locais significa ir ao encontro a problemas que vão desde a sensação de insegurança à segregação das regiões. Por sua vez, o poder público tem a responsabilidade de protagonizar intervenções que fogem, em seu cerne, de interesses comerciais e da especulação imobiliária.

Para discutir o impacto deste tema na rotina da população, o Diário do Nordeste publica nesta semana uma série de reportagens sobre os vazios urbanos de Fortaleza. Além de caracterizar o que são esses espaços e quais os impactos para o desenvolvimento da cidade, também abordamos o quê o Plano Diretor aponta para resolver a situação e exemplos de prédios ociosos e subutilizados na Capital que tiveram o uso transformado indicando soluções reais para ocupar de forma positiva o que antes eram vazios urbanos. 

DO VAZIO À VIVÊNCIA

“A questão da praça e areninha, eu acho que é uma coisa que precisa ter, que é uma coisa vantajosa para as comunidades, incentivar o esporte ... Mas, quando isso assume um papel central na política urbana de intervenções, de benfeitorias do poder público, em vez de isso ser conciliado com obras de equipamentos culturais, obras de equipamentos de saúde ou a provisão de habitação de fato para uma cidade tão desigual e com déficit habitacional tão alto, eu acho que isso é questionável”
Vinícius Saraiva
Arquiteto, mestrando no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura, Urbanismo e Design da Universidade Federal do Ceará (UFC) e pesquisador do Laboratório de Estudos da Habitação também da UFC

Antigo palco de rebeliões, mortes e insegurança generalizada, o Parque Dom Aloísio Lorscheider deu nova vida ao terreno onde antes funcionava o Instituto Penal Professor Olavo Oliveira I (IPPOO I), um dos mais importantes equipamentos do Sistema Penitenciário do Ceará. A unidade foi desativada em 2013 e, até dois anos atrás, era um dos grandes vazios urbanos de Fortaleza.

Desde 2022, o local abriga um espaço de convivência no bairro Itaperi, reunindo pessoas de todas as idades, equipamentos esportivos e de lazer e quiosques para alimentação. “Antes era muito ruim, escuro, tinha assalto. Não tinha um lugar para a gente fazer um exercício”, relembra Rossicléa, de 42 anos, moradora do bairro e vendedora de marmitas, durante uma de suas caminhadas da semana no parque. 

“Isso aqui não prestava não, só tinha o muro do presídio e pronto. Passar por aqui era muito perigoso. E agora estamos caminhando por aqui, tem movimento à noite”, destaca o aposentado Joaquim, de 68 anos, que mora no entorno e usa o espaço para se exercitar diariamente. 

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DO ABANDONO À FORMAÇÃO

Outro exemplo de mudança vem do Centro de Fortaleza. Desde o final de 2021, a Escola de Gastronomia e Hotelaria do Ceará deu nova função ao edifício da Avenida Presidente Castelo Branco (Leste-Oeste). O local passou mais de 10 anos abandonado, sendo alvo de pichações e refúgio para dependentes químicos.

Anteriormente, o espaço era o Condomínio Panorama Artesanal, projetado pelos arquitetos Fausto Nilo e Delberg Ponce de Leon, que também participaram do planejamento inicial da revitalização. Considerado inovador, o arquitetônico de 1981 possuía 90 apartamentos divididos em duas áreas, além de um centro de artesanato com 100 lojas. 

Hoje, o prédio de cerca de 4 mil metros quadrados é voltado para educação profissional e estímulo ao empreendedorismo. O espaço é formado por salas de aulas, laboratórios, biblioteca, refeitório e áreas de convivência.

“A cidade funciona como um tecido com atividades que são misturadas. Digamos, uma boa cidade hoje em dia, do ponto de vista urbanístico contemporâneo, é aquela em que você tem uma continuidade de interesse em espaço público e o espaço público é produzido pela existência das atividades privadas dentro das estruturas. O ideal era isso e muitas outras coisas”
Fausto Nilo
Arquiteto e urbanista

Em reflexão acerca dos casos de transformação dos espaços da cidade, Fausto Nilo defende que os projetos precisam ter a participação ativa da comunidade, que deve ser protagonista. Além disso, o arquiteto cita os exemplos de ocupação da região central, como o Theatro José de Alencar, a Pinacoteca e a própria Escola de Gastronomia, que enfrentam dificuldades para formar uma “cadeia contínua de interesses” na rua e no espaço privado. 

“São lugares que a partir das cinco da tarde entram em depressão urbana. E isso dificilmente dá a vitalidade completa. Muitas repartições públicas, às vezes, em edifícios históricos que poderiam ter outros usos não colaboram com a vivificação. E além do mais, um problema grave, que é o maior de todos, é que esses lugares, como o Centro da cidade, cada dia entram mais em declínio na atividade habitacional, que é a matriz de tudo”, evidencia o urbanista, que fez parte da idealização de outros projetos arquitetônicos da capital cearense, como o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura e o Mercado São Sebastião. 

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DO BALDIO AO LAZER

O Parque Rachel de Queiroz foi idealizado em 2014, com o decreto municipal que estabeleceu 19 trechos espalhados por vários bairros da capital. Mas, na prática, o local apenas recebeu o nome da cearense que foi uma das mais importantes escritoras do país. 

Até o início das obras de urbanização e paisagismo em 2020, o trecho do bairro Presidente Kennedy foi ponto irregular de despejo de lixo, palco de perseguições policiais e sinônimo de insegurança. 

“Quanto a terrenos vazios, há em regiões centrais ou bairros mais valorizados o uso como estacionamento de veículos ou, mais recentemente, com quadras de tênis de areia. Em muitos desses casos, o que ocorre é uma ocupação temporária com esse novo uso mais no sentido de esperar pela valorização do terreno que no futuro passará a abrigar algum edifício vertical residencial ou comercial”
Rérisson Máximo
Arquiteto e urbanista, conselheiro Estadual do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU/Ceará) e professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE)

“Foi uma mudança muito boa e radical. Era muito bagunçada. Todo canto que você vai as pessoas comentam essa mudança”, comemora Melo Júnior, de 65 anos. O aposentado comentou que chegou a flagrar abordagens criminosas no local. Agora, o espaço ganhou outra vida, com movimentação intensa até no período noturno.

Hoje, além da convivência, o parque abriga uma série de permissionários que encontram sustento por meio da nova ocupação. “Mudou completamente, tanto para o empreendedor como para as pessoas, que têm uma área de lazer. Além disso, trouxe oportunidades para quem estava desempregado. Uma área que ficou excelente e era só o matagal. O movimento é outro”, conta Deiviane Menezes, de 27 anos, que comanda um food truck no local desde 2022. 

Fruto da parceria entre os governos estadual e municipal, a revitalização do local é um dos casos em que o poder público foi protagonista. Como aponta o arquiteto e urbanista Rérisson Máximo, de modo geral, Fortaleza registra casos significativos de mudança de uso de edificações e terrenos estão associados a ações estatais ou paraestatais, em que conversões por parte da iniciativa privada têm sido de menor porte, principalmente voltadas para uso comercial. 

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DO DESERTO ÀS ARTES

O Complexo Estação das Artes, no Centro, tenta se consolidar como um novo sopro de vida para uma área que passou cerca de 8 anos como outro grande vazio. O local reflete o choque da passagem do tempo pelos interesses ligados ao uso do espaço urbano, já tendo abrigado um cemitério, uma estação ferroviária e, atualmente, um centro cultural. 

Já são dois anos de funcionamento com mais de 400 atividades e público total de mais de 200 mil pessoas. Atualmente, o conjunto abriga ainda o Mercado AlimentaCE, a Pinacoteca do Ceará, o Centro de Design, o Museu Ferroviário João Felipe e a sede da Secretaria da Cultura do Ceará (Secult-CE).

A Estação das Artes é um dos exemplos positivos de reconversão ao agregar movimentação e atividades culturais, avalia a arquiteta e urbanista e pesquisadora do Observatório das Metrópoles, Bruna Santiago. Por outro lado, ela cita o exemplo do Centro Dragão do Mar, que está com uma programação mais enxuta e mais vazio em relação ao novo ponto cultural, compara.

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“Não adianta você investir num equipamento e negligenciar os outros. Eu acho que seria interessante também citar, por exemplo, a antiga construção do aquário em que está se estudando em ser uma sede da UFC para o Labomar. Tudo bem que a edificação não foi concluída, mas pelo menos a infraestrutura ela que já tá lá e o esqueleto da edificação vai ser reaproveitado. Então, eu acho que é interessante citar como um caso que a gente ainda não sabe com detalhes como vai ser, mas que pode ser muito positivo”, ressalta Santiago.