‘Se for autista, a vaga some’: famílias encaram via crucis para matricular crianças em escolas do CE

Negar, suspender ou impor obstáculos à inclusão é crime previsto no Estatuto da Pessoa com Deficiência

Para pais e mães, a chegada do fim do ano traz uma tarefa básica: matricular o filho na creche ou escola. Em Fortaleza, porém, famílias de crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA) ou outras condições têm enfrentado dificuldades para efetivar esse direito, com obstáculos e negativas impostos pelas instituições.

A autônoma Érica Skalambrino, 37, tem preocupação dobrada: já enfrentou três negativas para matricular o filho e o enteado, de 8 e 9 anos. O filho de Érica está em processo de investigação de Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), enquanto o enteado já tem laudo de TEA há quase 1 mês.

“Desde setembro que tento fazer a matrícula das crianças e não consigo. Quando viram que eram filhos com deficiência, falaram que não tinham vaga, que a quantidade de alunos pra série dessas crianças já tinha sido atendida”, relata Érica.

Na segunda escola que procurou, ela chegou a ouvir do proprietário que “não encontrar escola pros filhos é problema dos pais”. Na terceira instituição, a autônoma ouviu que “a cota está preenchida”.

Recusar, cobrar valores adicionais, suspender ou procrastinar a inscrição de aluno com deficiência é crime previsto na Lei nº 7.853/1989 e tipificado pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, como explica Emerson Damasceno, presidente da Comissão Especial de Defesa da Pessoa Autista do Conselho Federal da OAB.

“Não há questão de dizer que não há vaga: isso não é permitido. Não existe limite de pessoas com deficiência por turma. É preciso saber que há esse direito. É obrigação do poder público e das gestões privadas cumprirem a legislação”, frisa.

“Num contexto geral, o drama de pais e mães de pessoas com deficiência não começa ao se conseguir a matrícula, se inicia antes, diante de obstáculos colocados”, pontua o advogado.

Emerson destaca que a dificuldade de estudantes com TEA, TDAH ou quaisquer transtornos ou deficiências acessarem o direito constitucional à educação já representa, em si, uma das barreiras impostas pelo capacitismo.

“A sociedade só será menos capacitista se perceber a rica diversidade que existe. Quando um gestor ou qualquer um da cadeia de ensino prepara obstáculos para pais e mães matricularem os filhos, já ergue a barreira atitudinal, que é a pior”, lamenta Emerson.

Ele avalia, ainda, outra questão: “não é apenas garantir vaga e formar turmas com 40 alunos, incluindo com deficiência, sem profissionais de apoio: as escolas têm de dar aos funcionários condições de trabalho”.

‘É sempre um período tenso’

A negativa, muitas vezes, vem nas entrelinhas, como mostra o caso da corretora de seguros Eveline Mota, 37. Ao tentar renovar a matrícula do filho Miguel, 3, na creche onde o menino já estudava, foi informada de que “a vaga dele tinha sido preenchida”, após um desencontro de agendas.

“Meu esposo ficou sem chão e perguntou o que poderia ser feito. A dona disse que dependeria de abrir nova turma”, relata Eveline, garantindo que “todos já estavam cientes do histórico” de TEA de Miguel, mas que já haviam vivenciado situações de preconceito.

“Uma funcionária chegou a dizer que o Miguel não só atrapalha a si como a outras crianças. Depois, a psicóloga da escola nos chamou pra conversar e meio que reclamou que ele batia nos outros. Não coloco venda nos olhos pra defender meu filho, mas o Miguel é muito doce e carinhoso. Em casa ele nunca empurrou nem bateu em criança nenhuma”, diz Eveline.

A mãe do menino afirma que a instituição procrastinou a matrícula, sob a justificativa de precisar esperar surgir uma vaga. “Mas não temos como esperar, porque na condição dele já é difícil conseguir vaga”, frisa.

Eveline publicou vídeos nas redes sociais e contatou o Ministério Público do Estado (MPCE) denunciando a situação, e declara que está “tomando medicação para ansiedade” diante da situação. “A adaptação dele foi muito difícil e vai começar tudo de novo. Esse período de matrícula é sempre muito tenso”, desabafa.

Nos últimos momentos do ano “é quando começa o terror das famílias”, como endossa Daniela Botelho, fundadora da Associação Fortaleza Azul (FAZ). Ela mesma já foi “convidada a sair” da escola onde a filha estudava, após a menina receber o diagnóstico de TEA.

“A escola se dizia incapaz de ter uma criança autista. É muito complicado você brigar na Justiça por isso. Como um pai ou mãe em sã consciência vai deixar seu filho numa escola onde ele não é bem-vindo? Diariamente chegam famílias na associação com esse problema”, desabafa.

Daniela relata ainda que embora a lei determine que as escolas tenham um profissional de apoio para cada pessoa com deficiência, muitas instituições privadas “querem cobrar a mais das famílias” por isso – o que é ilegal.

“Muitas famílias chegam pra fazer a matrícula e são recebidas muito bem, mas quando falam que a criança é autista, a vaga some. Começam a gaguejar, dizer que vão ver se vai ter mesmo a vaga. É gritante. E não existe uma fiscalização.”

Diante do “desespero” e de acumular três negativas de escolas diferentes, a servidora pública Rosângela Gadelha, 46, recorreu a uma alternativa complexa: matricular o filho numa turma de nível inferior ao que ele deveria estar.

A escola onde Israel, 7, que é autista e tem TDAH, estudou desde os 3 anos de idade só comporta alunos até o 1º ano. O menino deveria seguir para o 3º, mas a mãe precisou “implorar” para a instituição já conhecida recebê-lo, depois de peregrinar por outras três sem sucesso.

“Precisava matricular o Israel e a irmã. Com ela não tinha problema, mas com ele as escolas alegavam que não tinham suporte, que não tinha vaga. A gente sai arrasada. É uma negativa atrás da outra”, lamenta Rosângela.

Ela optou por não recorrer à Justiça, por não confiar que o filho teria um bom acolhimento nesse contexto.

Escolas podem perder credenciamento

O MPCE recebe denúncias e atua nessas situações por meio das promotorias de educação, direito do consumidor e também da pessoa com deficiência, como explica Hugo Porto, promotor de Justiça e coordenador auxiliar do Centro de Apoio Operacional da Cidadania (Caocidadania).

O promotor reforça que “as negativas de matrículas, sobretudo em escolas privadas, são uma clara violação legal”, e alerta ainda para outras condutas que, embora “sutis”, também representam violações de direitos. 

“Não é possível negar matrículas ou limitar o quantitativo de alunos em sala de aula. É ilegal e inconstitucional. Outra questão é a escola dizer que não está pronta, que não tem os recursos, os professores, gerando alongamentos ou desestímulos aos pais para matricular. Esses argumentos também são uma ilegalidade”, frisa Hugo.

Ele orienta que caso os pais tenham dúvidas se foram lesados, procurem o MPCE. As instituições tanto públicas como privadas que incorrerem nessas violações estão sujeitas a diversas penalidades, inclusive perda do credenciamento para funcionar.

“Nas escolas privadas, além de ações civis públicas pedindo até o descredenciamento, caso caiba; podem ser aplicadas multas elevadas por direito do consumidor violado. Negar matrícula é também um delito, então todas essas questões geram consequências nas esferas administrativa, civil e penal”, sublinha o promotor de Justiça.

Hugo informa ainda que o MPCE atende essas demandas presencialmente e também por todos os canais digitais, como e-mail e WhatsApp, além de telefone. A lista de contatos está no site www.mpce.mp.br.

O que dizem as escolas

O Diário do Nordeste procurou o Sindicato dos Estabelecimentos de Educação e Ensino da Livre Iniciativa do Estado do Ceará (Sinepe), que representa diversas instituições privadas de ensino básico e superior, para questionar:

  • Quais os desafios para as escolas privadas atenderem alunos com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e outras condições;
  • Se a demanda de estudantes com esse perfil tem aumentado;
  • O que as escolas têm feito para se adaptar;
  • Se o Sinepe, enquanto entidade representativa, orienta as gestões sobre isso;
  • O que pode ser feito para reduzir esses episódios de discriminação; e
  • Como as escolas agem diante desses problemas.

A entidade não enviou retorno até esta publicação.