De volta à Fortaleza, sem luz elétrica nem a agitação de capital, uma multidão se forma ao lado do Quartel Federal, na Avenida Alberto Nepomuceno, para conferir o primeiro voo de balão na cidade, há exatos 116 anos. Rebobine o tempo, neste primeiro dia do ano, para o 1º de janeiro de 1907 que escreveu um capítulo peculiar na história da cidade.
O protagonista deste momento foi o pernambucano José Pereira da Luz, capitão da Guarda Nacional. Zé da Luz, como era conhecido, veio para Fortaleza repetir o voo de balão realizado no Recife.
A empreitada foi feita com o balão nomeado de ‘Brasil’, trazido da Europa por 6 mil réis. Os detalhes daquele momento foram registrados pelo historiador Raimundo de Menezes no livro “Coisas Que o Tempo Levou”.
“De longe, avultava, dominando a multidão, a esfera de cor amarelada do balão, semelhante a uma enorme laranja, que baloiçava ao vento, espiçando a curiosidade popular”, descreve Raimundo de Menezes sobre o episódio.
Isso dominou as conversas naquele dia e alguns, devido à estranheza, nem acreditaram. Por outro lado, muitos foram ao local para ver de perto o que iria acontecer. Até o governador da época, Antônio Pinto Nogueira Acioly, chegou numa carruagem reluzente.
Zé da Luz, descrito como baixo, moreno, pálido e de fisionomia agradável, chegou no local saudando o público, que soltava gritos de aclamação. A tentativa foi inspirada no voo de Santos Dumont no ‘14-Bis’, dois meses antes.
O balão subiu com facilidade, passeou pelo Centro da cidade até descer na direção da Praia do Arpoador, "sempre acompanhado pelo entusiasmo crescente dos fortalezenses”, como detalha Raimundo de Menezes.
“E uma apoteose indescritível para Zé da Luz, carregado em triunfo, aquela sua glória embriagadora! Durante dias foi só no que se falou”, completa.
Sebastião Ponte, historiador e professor aposentado da Universidade Federal do Ceará (UFC), contextualiza que a aviação começava a despontar e ali “foi a primeira vez que a população de Fortaleza viu alguém voando tão alto no céu da cidade”.
O Pereira da Luz foi responsável por essa visão delirante para a nossa sociedade da época, causou realmente um reboliço, todo mundo entusiasmado e acompanhando o trajeto do balão
Zé da Luz não se contentou com o sucesso daquele voo. No dia 6 de janeiro, voltou a posicionar o balão Brasil em Fortaleza, mas a nova tentativa foi marcada por falhas, a gaiatice cearense e acabou no hospital.
Como aconteceu o novo voo
Os fortalezenses inflamaram o capitão para realizar uma nova subida e, assim, Zé da Luz voltou a despertar atenção na cidade. “Foi o mesmo alvoroço beliscante da primeira vez. E não ficou nenhum lugar vazio em torno do Quartel Federal”, descreve Raimundo.
“Desde o primeiro instante, se notou logo que o ‘Brasil’ não se achava seguro no ar, subindo com dificuldade. Logo adiante, tropeçou nos telhados das casas, nas imediações do Passeio Público”, detalha.
O balão tombou violentamente depois de esbarrar num poste e o capitão foi encontrado caído, em meio às cordas, com a perna esquerda fraturada.
“Os populares improvisaram uma maca, formando uma verdadeira procissão rumo da Santa Casa onde ficou internado cerca de três meses”, completa o registro. Naquele período, de pobres a ricos visitavam o balonista.
Uma dessas pessoas, pela ingenuidade, emocionou quem estava na sala privada do hospital ao fazer uma pergunta.
– Então, seu Zé da Luz, vocimicê, que subiu tão alto lá no céu, diga-me uma coisa: chegou a ver algum anjo da corte celestial?
O acontecido também emociona historiadores, como Sebastião Ponte. “É uma passagem linda mesmo, reflete muito do período da época: a crença de que entre as nuvens, no azul do céu, os anjos ficavam brincando e tocando harpa”.
Zé da Luz, depois de se recuperar, tentou fazer um novo voo em abril, num terreno na General Sampaio, mas não conseguiu. Àquela altura, já corriam comentários próprios da gaiatice cearense.
“Trocadilhos espirituosos fizeram sucesso. Um desses ficou guardado na memória dos fortalezenses de então: Já vi pereira dar pera, mas pereira dá luz?”
Memória de Fortaleza
A capital cearense teve aquele voo de balão, talvez, como uma das primeiras manifestações da modernidade. Alguns anos depois, a sociedade vivia um “surto de afrancesamento”, como define o especialista.
As praças foram reformuladas com itens importados e surgiram novas formas de deslocamento e de produção na cidade. Esses acontecimentos, então, fazem um retrato da época.
“Fazem parte da história do cotidiano da nossa cidade, informam como era o dia a dia da urbe, da população, como as pessoas se divertiam, como reagiam às novidades, como se comportavam corriqueiramente na rua e em casa”, analisa Sebastião.
É muito estimulante e contribui muito para sabermos sobre os modos de viver e sentir, costumes, crenças, modas e modismos da sociedade fortalezense ao longo do tempo
Reviver esses momentos mostra as transformações urbanas e sociais da capital cearense. “Face a essas novas experiências, promovidas pelo anseio de modernizar a urbe a todo custo, Fortaleza perdia sua inocência de cidadezinha provinciana e se tornava, inexoravelmente, uma das principais cidades do país", conclui.