A Câmara Municipal de Fortaleza aprovou, no dia 25 de outubro, o Projeto de Lei 0522/2018 segundo o qual a Prefeitura de Fortaleza pode exigir que trabalhadores da educação da rede municipal sejam submetidos, todo ano, a testes psicológicos e psiquiátricos. A medida seguiu para sanção do prefeito José Sarto, que segunda-feira (30), afirmou que irá vetar a proposição. Mas, mesmo que Sarto assim proceda, o legislativo municipal pode derrubar o veto.
No legislativo, a norma é defendida pelo autor, vereador Jorge Pinheiro (PSDB), como um “mecanismo de prevenção”, mas representantes dos professores e do Conselho Regional de Psicologia, argumentam que, na prática, o projeto contém diversos problemas que vão de aspectos técnicos à falsa ideia de que é possível prever que pessoas estão suscetíveis a surtos e problemas mentais agudos apenas com a realização de testes.
A proposição tramita na Câmara Municipal desde dezembro de 2018 e na forma como foi aprovada autoriza a Prefeitura a exigir de todos os servidores e funcionários públicos, contratados e terceirizados que exercem funções em creches e escolas a submissão anual aos testes.
No projeto não há nenhum detalhamento técnico sobre quais são esses testes e qual a finalidade específica de cada avaliação (de construto de aprendizagem, personalidade, inteligência, condutas sociais/desviantes, habilidade/competência, por exemplo).
Segundo a proposta, o resultado deve obrigatoriamente ser fornecido à instituição a qual o profissional está ligado antes do início do período escolar. O autor sugere ainda que “a Secretaria Municipal de Educação (SME) poderá ficar responsável por fiscalizar e registrar todos os exames”.
Mas, não há menção sobre quem realizará os testes, tampouco, qual estrutura será utilizada para isso. Na discussão entre os parlamentares, a ideia foi de aprovação da norma, com uma regulamentação posterior com os detalhes.
A norma diz ainda que a SME poderá apresentar os resultados dos testes ao setor de medicina do trabalho que poderá “verificar a aptidão ou necessidade de afastamento para tratamento do profissional”. Além disso, após o trâmite administrativo, “os exames poderão ficar armazenados em local definido pela Prefeitura para constituição de arquivo.”
Nas redes sociais, o prefeito Sarto disse, na segunda-feira, ser contra a proposta e afirmou que é dever da gestão “garantir o respeito e a dignidade dos servidores, especialmente numa área tão fundamental e desafiante, como a educação pública”. Sarto acrescentou que “saúde mental é um tema importante e sensível que impacta fortemente nossa sociedade” e por isso “é preciso tratar a questão com todo o cuidado”.
O Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação do Ceará (Sindiute) já se posicionou publicamente contrário à proposta e marcou um protesto a ser realizado nesta terça-feira (31), às 8h, na Câmara Municipal, em defesa do veto ao PL 522/2018. Na votação no legislativo, os parlamentares Adriana Almeida (PT), Adriana Gerônimo e Gabriel Aguiar (ambos do Psol) foram contrários à proposta.
O que diz a análise da área da saúde sobre a proposição?
“Primeiro, avaliação psicológica não é só testagem. Se usa a testagem em algumas situações de avaliação. Para isso, temos uma bateria de testes que precisamos usar. No site do Conselho Federal de Psicologia tem toda a bateria de testes que precisam ser utilizadas para diferentes casos. A (proposta de) lei municipal em questão não tem o menor valor técnico para avaliação psicológica”, afirma a psicóloga clínica, presidente do Conselho Regional de Psicologia 11ª Região, e profissional que trabalha com realização de avaliação psicológica, Niveamara Sidrac.
Isso porque, explica a psicóloga, o primeiro ponto é que a avaliação psicológica deve ser utilizada dentro de um contexto e não de modo indiscriminado. Segundo ela, na justificativa do PL, aparentemente os parlamentares partem do pressuposto que, a partir do momento em que anualmente se avalia os funcionários das escolas, “se evitaria um surto”. Mas, reforça a psicóloga: “isso não é verdade”.
Na proposição, a lei municipal foi intitulada “Professora Heley de Abreu”, que segundo a justificativa foi uma docente brasileira que em 5 de outubro de 2017, em uma creche de Minas Gerais, protegeu crianças quando o vigilante da unidade ateou fogo em si mesmo. Na tragédia, diz a justificativa, 10 crianças morreram. O vereador Jorge Pinheiro argumenta que o vigilante tinha uma doença mental que poderia ter sido diagnosticada e tratada.
Mas, a psicóloga Niveamara Sidrac reitera:
“Avaliação psicológica não previne surto de ninguém. Ela não vai garantir com uma avaliação hoje que amanhã você surte. Até porque o processo de surto não acontece de uma hora para a outra. Ele é um processo. Então, não se justifica essa proposta porque ela é absurda a nível técnico. Porque nenhuma avaliação psicológica, nem psiquiátrica, vai conseguir garantir que você surte”.
Ela reforça que o teste não previne surtos e isso fica claro, inclusive, nos laudos emitidos nas avaliações psicológicas. “Quando a gente faz um laudo, coloca que esse laudo é processual e de acordo com o contexto e o momento da pessoa. É padrão”, diz.
De acordo com Niveamara, a avaliação psicológica pode garantir “um raio X de funções cognitivas, emocionais” e completa “sempre feita dentro de um contexto no qual o teste é um meio e não um fim”. Além disso, pondera, é preciso ter “um motivo” para que ela seja feita. No contexto anual, com o propósito apontado na lei, a psicóloga ressalta “ela não se sustenta”.
“Parece uma coisa boa. Mas além dos problemas éticos e técnicos, tem limitações também estruturais”, diz a psicóloga. Dentre elas, “quem vai fazer os testes? Vão credenciar psicólogos no Estado para essa finalidade? A lei não traz nada disso. Ela inclusive, para ser proposta, precisaria ter levado em consideração o ponto de vista dos psicólogos, pois, se isso tivesse ocorrido, é possível que a proposição não estivesse tão cheia de lacunas”.
Quando se usa a avaliação psicológica?
Segundo a psicóloga clínica, presidente do Conselho Regional de Psicologia 11ª Região, Niveamara Sidrac, esclarece que a avaliação psicológica precisa ter um motivo. Ela explica que em concursos públicos a avaliação pode ser adotada, mas, em geral, não se direciona à categoria da educação.
“Qual o contexto que a avaliação psicológica se apresenta? Você tem o perfil do cargo que é dado pela empresa contratante e o psicólogo vai lá e monta uma bateria de testes para saber se o perfil está alinhado com o do cargo. Teste psicológico não diz se ‘a pessoa é doida ou não’, se ela vai surtar ou não. Ele define traços e possibilidades”.
A psicóloga chama atenção para reflexão de que os cuidados na saúde mental dos profissionais da educação, por exemplo, passam pela garantia de investimentos em saúde do trabalhador, em segurança nas escolas, em lazer, cultura, e qualidade de vida. “Quais as redes de apoio que esses funcionários, que vão desde o porteiro ao diretor, têm hoje?”, questiona.
“Quando a gente usa a testagem psicológica nesse formato argumentado no projeto de lei, estamos abafando o que, de fato, deveria ter sido feito como prevenção. Isso sim preveniria. Hoje, você tem professores que passam dois ou três expedientes fora de casa preparando material. Temos violência nas escolas. É um ambiente estressante”, acrescenta.
No site do Conselho Federal de Psiciologia, um material explicativo sobre aplicação de testes psicológicos na prática profissional, indica que para realizar a avaliação psicológica, o psicólogo deverá utilizar fontes de informação fundamentais e, caso queria, fontes complementares.
Segundo a entidade são fontes fundamentais:
- Testes psicológicos aprovados pelo CFP para uso profissional da psicóloga e do psicólogo e/ou;
- Entrevistas psicológicas, anamnese e/ou;
- Protocolos ou registros de observação de comportamentos obtidos individualmente ou por meio de processo grupal e/ou técnicas de grupo.
São fontes complementares:
- Técnicas e instrumentos não psicológicos que possuam respaldo da literatura científica da área e que respeitem o Código de Ética e as garantias da legislação da profissão;
- Documentos técnicos, tais como protocolos ou relatórios de equipes multiprofissionais.
Como é feita a avaliação psicológica?
No processo de avaliação psicológica, explica Niveamara Sidrac, a pessoa é submetida a uma série de testes, entrevistas, dinâmicas de grupos, testes situacionais. “Isso vai depender de cada caso. Mas nunca deve ser feita a testagem pela testagem”, completa. As empresas que realizam buscam perfis específicos de profissionais e, para isso, a avaliação psicológica pode ajudar.
“Por exemplo, no comércio é muito comum. Você vai selecionar vendedores e busca um perfil de alguém que tenha mais liderança, seja persuasivo, comunicativo, com bom nível de compreensão. A pessoa tem que ter alguns traços, pois, se eu pegar uma pessoa muito introvertida, com dificuldade de se expressar em público, e de demonstrar emoções, talvez não interesse colocar no cargo de vendedor. Essa pessoa talvez esteja mais apta a outras funções, pois pode render muito mais. É nesse sentido que se usa a avaliação”.
No caso da educação, quando há necessidade de realizar a avaliação, explica, devido às diferentes funções dentro das escolas, é preciso baterias diferentes de testes e procedimentos.
“Em uma seleção para professor ou para qualquer outra área dentro da escola, eu preciso ter o perfil do que eu quero. E aí, o psicólogo vai montar a bateria de testes que avalia e chega mais próximo daquilo ali. Monta bateria de personalidade, de perfil cognitivo. Para cada aspecto de personalidade, tenho que pegar pelo menos três testes que me digam a mesma coisa. Porque se tiver dúvida, tenho que aplicar mais um. Depois faço a ligação de todos esses procedimentos e aí sim se dá o laudo”.
O que o Sindicato argumenta?
Desde a aprovação do projeto na Câmara, o Sindiute tem manifestado repúdio à proposição. Um dos aspectos apontados pelo Sindicato é que a proposta é preconceituosa e “contribui para o estigma relacionado aos adoecimentos psicológicos e psiquiátricos”.
Em nota divulgada nas redes sociais, a entidade reforça que “processos de adoecimento psicológico muitas vezes são resultado das condições de trabalho extenuantes enfrentadas pelos educadores, e impor testes anuais não aborda a raiz desses problemas”.
Além disso, o Sindiute argumenta que projeto “cria uma espécie de ‘polícia da saúde mental’, que tem o poder de decidir sobre a aptidão ou a necessidade de afastamento para tratamento dos funcionários e servidores públicos”. Essa abordagem, destaca a entidade, “é excessivamente invasiva e autoritária, desconsiderando a complexidade da saúde mental e o papel dos profissionais de saúde em diagnosticar e tratar condições psicológicas e psiquiátricas”.
A mobilização do Sindicato é para que o prefeito Sarto vete a proposta. E ele, além de ter assegurado que assim irá proceder, informou também, na segunda-feira, que vai “conversar com os vereadores para que a Câmara Municipal acompanhe o veto”.