O silêncio da madrugada foi interrompido pelo som de carros, motos e de homens encapuzados que entraram armados na ocupação "Deus é Amor", no bairro Carlito Pamplona, em Fortaleza. Antes de o dia clarear, nessa terça-feira (10), o corre-corre foi formado na comunidade que já havia "construído" barracos nos quais dormiam. Os moradores do local alegam que o grupo abordou as famílias de forma violenta nessa terça-feira (10).
As marcas da ocasião aparecem em pernas machucadas por balas de borracha ou arranhões das quedas durante a abordagem, mas também no sentimento de injustiça pela morte de Mayane Lima, vendedora de 28 anos que fazia parte do grupo. Os ocupantes também compartilham a falta de condições financeiras de pagar aluguel e do desejo de estar no local onde não observam uso há cerca de 30 anos.
O terreno possui 33,5 mil m² e está, na maior parte, dividido por demarcações, pedaços de madeira e lonas com placas que indicam o interesse das famílias de construir uma moradia. No local, o cheiro de fumaça do fogo ateado durante a madrugada ainda é perceptível, bem como o medo na expressão de mulheres e crianças que ainda não sabem onde vão viver, como presenciado pelo Diário do Nordeste na manhã desta quarta-feira (11).
A aposentada Fabia Maria, de 70 anos, foi uma das moradoras surpreendidas com a desocupação do terreno. A idosa relatou ter sido acordada com gritos durante a ação feita de forma violenta, em torno das 3h da manhã. Ela aponta ainda que homens usaram armas de fogo para intimidá-la a sair correndo do local. A retirada do grupo foi conduzida por "seguranças contratados pela empresa privada", conforme a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), em relação à Fiotex, proprietária do terreno.
Eu tava dormindo no terreno, quando abri os olhos só vi a lanterna e o revólver na minha cara. Puxaram meus cabelos e disseram 'acorda, véa, faz carreira'. Eu tenho a perna doente, sem poder me levantar
A Fiotex, no entanto, nega que havia pessoas morando no terreno no momento da desocupação. Em nota, a empresa afirmou que é proprietária do terreno e “adotou as medidas para cessar a demarcação ilegal". A companhia informou que a ação foi testemunhada por policiais e a equipe da empresa foi "surpreendida por agressores vindos de fora do terreno, arremessando pedras, ateando fogo e realizando disparos contra todos que se encontravam no local e seus arredores”, complementou.
Ao ser questionada sobre o momento da desocupação, Fabia Maria diz não achar "justo virem de madrugada, acordar uma senhora de idade". A idosa estava acompanhada da filha adulta no momento da ação e deu detalhes do conflito.
"Empurraram minha filha, só faltou rasgar a blusa dela, não deu tempo nem pegar minha garrafa d'água, porque estavam todo tempo gritando. Agarraram nos meus cabelos. [...] Quebraram meus óculos e não tenho condições de comprar um novo, estou prejudicada porque só enxergo de um olho", contou ela, em entrevista ao Diário do Nordeste.
Fabia Maria conta que já sofreu com outra desocupação, ocorrida no bairro Pirambu. Viúva e mãe de 6 filhos, a aposentada morava de aluguel e, por não ter mais condições de pagar a prestação, mudou-se com a família para o terreno para "ter um lugar". Ela citou ainda dificuldade pelas despesas com remédios por ser acometida de hipertensão e diabetes.
Após a desocupação, a idosa foi para a casa de uma familiar, mas diz que pretende voltar ao terreno porque "tem que lutar" pelo seu lar.
"Vou tentar, pedir a Deus e Nossa Senhora que me dê um pedacinho de chão porque a gente precisa”, afirmou.
"Abordagem monstruosa, truculenta e injusta"
O líder comunitário Rafael Pequiar definiu a abordagem como “monstruosa, truculenta, indevida, injusta e ilegal”. Conforme o relato, homens encapuzados e armados chegaram ao terreno em motos e carros por volta das 3h20 da manhã de terça assustando os moradores.
"Chegaram batendo, esculhambando e desrespeitando os direitos dos cidadãos. Eu poderia citar mil palavras, mas a palavra que tenho agora é 'indignação' porque uma inocente morreu e o povo só pede justiça", relatou.
Pequiar afirmou ainda que a comunidade irá resistir e voltar a ocupar o espaço, mesmo após o embate.
"A gente vai voltar, isso é um fato, nem que seja debaixo de tiro, porrada e bomba, porque a comunidade é símbolo de resistência e resiliência", disse. "A gente vai resistir, a gente não está aqui para ofender ninguém, o terreno estava abandonado há mais de 30 anos. Estava servindo pra doenças, bichos peçonhentos”, completou.
Segundo o líder comunitário, a ONG Caminhando Nas Mãos Certas, composta por mais de 600 pessoas, estava organizando o terreno para, de uma forma justa, dar um espaço para cada ocupante.
"Quem está aqui é o preto e favelado que não tem voz - ou que só tem de dois em dois anos, para votar. [...] O povo tem direito à moradia própria, assistência familiar, ao saneamento básico, à educação, e a gente vai lutar por justiça", sublinhou Rafael.
“Graças a Deus, escutei a gritaria e deu tempo de tirar meus filhos”
Mãe solo de quatro filhos, a dona de casa Samara Moura, de 29 anos, comentou sobre o alívio de ter percebido a ação violenta a tempo de conseguir tirar as crianças do local.
“Meus filhos estavam na minha barraquinha. Graças a Deus, eu escutei a gritaria e deu tempo para me acordar e tirar eles. Eu corri para o meio da rua, porque eu não tenho onde morar”, contou.
Samara disse ainda que luta pela moradia desde que precisou entregar a antiga casa por não conseguir pagar o aluguel.
“Eu estou aqui na invasão, porque eu sou mãe solteira, tenho quatro filhos, não tenho condição de pagar o aluguel, eu vivo do meu Bolsa Família e estou lutando pela moradia. Eu morava de aluguel e entreguei a minha casa, porque o aluguel já estava atrasado e vim para dentro da barraca, só com a cara e a coragem”, revelou.
Além de ver a moradia sendo desocupada, a também dona de casa Liderlene Souza, de 24 anos, revelou ter sofrido outra violência. Ela foi atingida por tiros de bala de borracha durante o protesto pela morte de Mayane Lima nesta quarta-feira (11). "A gente tava pela justiça da morte dela e eles atiraram", disse a jovem, enquanto mostrava as marcas dos tiros na pele.
Durante a madrugada de desocupação, Liderlene disse que foi acordada pela mãe e se deparou com um cenário caótico de destruição. "Minha mãe me acordou dizendo que tinham invadido e eu tive que vir correndo para tomar meu canto, vi fogo, muita destruição. A gente conseguiu esse terreno e temos que tomar de volta", afirmou.
"Foi terrível. Eu vi a situação e a gente não quer passar mais por isso. Minha esperança era construir minha casa", acrescentou.
Atendimento de assistência social
A Secretaria dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS) informou que as famílias afetadas pela desocupação do terreno receberão, de forma prioritária, atendimento socioassistencial na sede do Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) Jacarecanga, equipamento que atende o território.
Já a Agência de Fiscalização de Fortaleza (Agefis) ressaltou que sua atuação é voltada para ocupações irregulares em áreas públicas, conforme determina a Lei Complementar nº 190/2019, do Código da Cidade de Fortaleza. O órgão apontou que a desocupação do Carlito Pamplona ocorreu em propriedade particular.