Atualização: Três dias após a publicação desta reportagem, a pesquisadora contatou o Diário do Nordeste para informar que o nome popular "tabaco selvagem" não se aplica à Nicotiana benthamiana utilizada na pesquisa, embora este seja o mesmo nome científico do tipo de tabaco anteriormente citado no título desta matéria. A professora afirmou, por meio de assessoria de comunicação, que a Nicotiana benthamiana a partir da qual é feita a vacina cearense contra a dengue é produzida em laboratório e não possui nome popular. Artigos científicos, como de pesquisadores de universidades do Brasil e da Austrália, porém, atribuem o nome popular de tabaco selvagem à Nicotiana benthamiana.
O Ceará já registrou, neste ano, mais de 7,7 mil casos e três mortes por dengue, segundo a Secretaria Estadual da Saúde (Sesa). Parte das infecções, porém, seria prevenível por uma vacina tetravalente cearense – que começou a ser desenvolvida há 18 anos no Estado, mas nunca foi concluída.
O projeto de produção do imunizante pela Universidade Estadual do Ceará (Uece) teve início em 2006 e envolve, além da vacina, a “busca por metodologias rápidas e acessíveis para diagnóstico diferencial e estudos de monitoramento epidemiológico dos 4 sorotipos da dengue em insetos vetores”.
As informações são da professora Izabel Florindo, bioquímica que coordena o estudo na Uece, concedidas em entrevista ao Diário do Nordeste. “Quando iniciamos nossas pesquisas direcionadas ao controle da dengue, o Ceará enfrentava uma epidemia, como atualmente. Infelizmente, nada mudou. A dengue é endêmica”, contextualiza.
A vacina, explica a professora, é produzida a partir de uma planta produzida em laboratório – a Nicotiana benthamiana –, e demonstrou eficácia superior a 90% na proteção contra a dengue.
A pesquisa que visa chegar a um imunizante cearense contra a arbovirose já passou por, pelo menos, seis etapas:
- Produção de proteínas candidatas vacinais em plantas, em parceria com pesquisadores do Canadá;
- Caracterização bioquímica das proteínas;
- Estudo da resposta imunológica em camundongos;
- Teste de toxicidade;
- Testes da imunogenicidade (capacidade que uma vacina tem de gerar uma resposta imune);
- Verificação se os anticorpos produzidos geram proteção contra o vírus dengue.
“Os testes pré-clínicos que foram realizados em camundongos e mostraram a eficácia e segurança da vacina com alta especificidade e sensibilidade, induzindo a produção de anticorpos neutralizantes que impedem a infecção viral”, explica a professora.
É uma vacina que tem o potencial de controlar a doença. Ademais, ela não apresenta toxicidade e nenhuma reação adversa foi observada.
Uso de planta em laboratório
O desenvolvimento da técnica de utilização de vegetais como “biofábricas” de proteínas – úteis para produzir vacinas, anticorpos, enzimas, hormônios e outros recursos – teve início na Uece em 2002. A Universidade é “pioneira no Brasil a dominar totalmente esta tecnologia”, como destaca Izabel Florindo.
Para a vacina da dengue, a equipe chegou a utilizar o feijão de corda como plataforma para a produção das proteínas, “de forma a aproveitar o potencial de nossa região para a produção dessa cultura”, segundo justifica a professora.
No processo, os cientistas injetaram genes do vírus na planta do feijão de corda, que desenvolveu as proteínas capazes de induzir a produção de anticorpos no organismo humano. Os antígenos foram isolados para serem aplicados em forma de vacina.
“Contudo, percebemos que isso poderia se tornar um problema do ponto de vista de regulamentação, uma vez que essa espécie nunca havia sido utilizada para esse fim, tornando mais difícil conseguir aprovação dos órgãos reguladores”, elucida Izabel.
Assim, estabeleceu-se o uso da Nicotiana benthamiana, amplamente utilizada no mundo para a produção de insumos biotecnológicos aplicados à saúde humana. “Preferimos poupar tempo e recursos que seriam necessários para validar a plataforma de produção em feijão de corda”, pondera a coordenadora do estudo.
‘Falta de investimentos’
A primeira vacina contra a dengue a chegar ao Ceará foi a Qdenga, da farmacêutica Takeda, que desembarcou no Estado em abril deste ano. Atualmente, ela é aplicada apenas em crianças e adolescentes de 10 a 14 anos, que compõem o público-alvo.
A vacina da Uece, contudo, tem diferenciais em relação à que está no mercado. “Utilizamos técnicas de biologia molecular para a produção de uma poliproteína contendo as proteínas dos quatro sorotipos da dengue, 1, 2, 3 e 4”, inicia Izabel.
“Como a vacina é composta de apenas proteínas dos quatro sorotipos, ela não causa a doença, apenas induz a produção de anticorpos protetores. A vacina Qdenga é composta de vírus atenuado, que causa infecção, podendo causar a doença menos grave ou não”, completa.
Além disso, com um imunizante local, o Estado teria potencial de expandir a proteção para mais pessoas – mas segundo a professora Izabel Florindo, os pesquisadores carecem de recursos para prosseguir com a produção.
“Embora tenhamos todos os resultados necessários para a submissão à Anvisa, o avanço da etapa para a aplicação dos testes clínicos (em seres humanos) exige um conjunto de investimentos que, no momento, não temos disponibilidade”, informa Izabel.
Em 2023, a pesquisa chegou a ser retomada pela Universidade. Segundo a professora, isso foi possível devido a “investimentos na infraestrutura do laboratório e recursos humanos qualificados de alunos de doutorado e pós-doutorado com recursos de agência de fomento nacional”.
Por que não há recursos?
O Diário do Nordeste questionou a Secretaria de Ciência, Tecnologia e Educação Superior (Secitece), órgão ao qual a Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico é vinculada, sobre possíveis investimentos para a conclusão da vacina cearense contra a dengue.
Em nota, o órgão informou que, “nos últimos 10 anos, a Funcap aportou, aproximadamente, R$ 2 milhões em recursos destinados a projetos submetidos diretamente pela pesquisadora ou para propostas em que atuou como participante”.
“Apenas um dos projetos submetidos pela pesquisadora teve como foco a ‘Produção de proteínas recombinantes dos vírus da Hepatite C e dengue para o desenvolvimento de testes de diagnóstico utilizando plantas como biorreatores’”, recobra o órgão.
“O projeto recebeu investimento de R$ 26 mil através do edital 04/2014 lançado pela Funcap”, complementa a Secitece.
A Pasta diz ainda que “sobre recursos do Governo do Estado para o trabalho de pesquisadores, especialmente na área da saúde e no desenvolvimento de vacinas, o Complexo de Laboratórios Multiusuários, da Uece, recebeu investimento de mais de R$ 2,5 milhões, por meio do Programa de Modernização Tecnológica do Ceará (Promotec), coordenado pela Secitece”.
O complexo, segundo a Secitece, “eleva o desenvolvimento de pesquisas básicas e aplicadas dentro da Universidade que envolvam biologia molecular e a grande área da Saúde”.
A Secitece finalizou reafirmando “o compromisso com a ciência e com a pesquisa cearense para o desenvolvimento de novas tecnologias e inovação” e reforçando que “a Funcap segue aberta a apoios de qualquer espécie, desde que sejam submetidos pelas vias previstas na legislação pertinente”.