Estudo mapeia a fome em Fortaleza, e pesquisadores investigam situação do grande Bom Jardim

Na área com 170 mil moradores o aumento da insegurança alimentar é ponto comum para inúmeras famílias. Pesquisa da UFC e Unilab irá mapear a situação a partir de 14 cozinhas comunitárias.

Não há uma quantidade precisamente demarcada. Não se sabe exatamente quantos dos 2,6 milhões de habitantes de Fortaleza estão nessa condição. Mas, a realidade evidencia que a fome voltou a assombrar, e mais ainda, a maltratar muitos desses habitantes.

No grande Bom Jardim - área da periferia de Fortaleza com 5 bairros: Bom Jardim, Siqueira, Canindezinho, Granja Lisboa e Granja Portugal - uma pesquisa iniciada, essa semana, busca descobrir justamente os rastros da insegurança alimentar na Capital e, com isso, estabelecer um mapa participativo de enfrentamento ao grave problema

Nas diversas realidades dos 170 mil habitantes desse grande território, a acentuação da fome é ponto comum para inúmeras famílias.

Desemprego, falta de renda, miséria. Condições precárias e pratos vazios. Privações indicadoras da extrema pobreza. São esses fatores que colocam o Grande Bom Jardim no centro da pesquisa que investiga a fome a partir do trabalho de 14 cozinhas comunitárias na área. 

Na prática, são esses equipamentos, de distintas estruturas, que na linha de frente podem ajudar a identificar, dentre outros, quem está em condição de miséria, qual o ‘endereço’ da insegurança alimentar, quantas famílias padecem e mais ainda, o que é possível e preciso fazer na periferia de Fortaleza para enfrentar a fome. 

Em meio ao avanço das dificuldades econômicas e sociais para a população, sobretudo, na pandemia, foram e são essas cozinhas os espaços de refúgio. É nelas que se realiza, dentre outras atividades, a distribuição de comida, seja de cestas básicas ou alimentos já prontos para consumo, como sopas e quentinhas. 

População dos 5 bairros do Grande Bom Jardim: 

  • Granja Lisboa: 52.042
  • Canindezinho: 41.202
  • Granja Portugal: 39.651
  • Bom Jardim: 37.758
  • Siqueira: 33.628

No Brasil, conforme o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19, feito pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (REde Penssan), divulgado em 2021, há insegurança alimentar em 55,2% dos lares brasileiros 

116,8
Milhões de brasileiros não têm acesso pleno e permanente a comida, em números absolutos. 

Atuar para deter a fome

No Siqueira, a cozinha comunitária do Centro Popular de Educação e Cultura Pé no Chão (Cpec), entidade que existe há mais de 25 anos, é um dos equipamentos que será pesquisado. No local, Bernadete Sousa, integrante do Cpec Pé no Chão, já testemunhou em distintos momentos a dinâmica dos efeitos da fome. Viu e vê de perto os estragos que a miséria causa. 

Quando fundada ainda na década 1980, o objetivo da organização “era garantir um almoço para a população assistida pelo projeto”, conta ela. Em 2022, a batalha segue. Agora, para ter insumos que possam assegurar, ao menos, uma refeição à população que padece continuamente, com a falta de alimentos. 

Nos 2 anos de curso da pandemia, a cozinha funcionou, dentre outros, servindo sopas, feitas com cabeças de peixes doadas, peixes próximos ao vencimento, e de ossadas recolhidas no Mercado São Sebastião. 

A fome de cerca de moradores de 3 comunidades (Marrocos, Nova Canudos e Nova Esperança) no Grande Bom Jardim era saciada também com alimentos doados por redes de supermercados no bairro. Tudo captado em conjunto com outras organizações sociais da área e preparado na cozinha.  

“A gente fazia a sopa quase todos os dias. Distribuía leite, peixe, e a cesta básica. Fizemos isso durante quase toda a pandemia. A gente tinha o cuidado de dar às pessoas que tinham fome. Agora, com a redução da pandemia de Covid, temos a grande pandemia da fome. Na distribuição da comida, traziam balde para levar a sopa”.
Bernadete Sousa
Integrante do Cpec Pé no Chão, no Siqueira

Os relatos de Bernadete especificam ainda que a situação é tão grave que, em muitos casos, até quando a cesta básica é recebida, faltam condições para cozinhar os alimentos. As famílias não têm gás, ou sequer carvão, muito menos recursos para comprá-los. 

Mas, há meses, as doações cessaram e a cozinha da organização parou de funcionar. Bernadete destaca que espera a estruturação de políticas públicas, para que ações emergenciais de distribuição como essa percam a necessidade. 

“Nós saímos da pobreza para a miséria. Se você for para dentro do Marrocos, que tem casebres mesmo, você vai ver o tanto de pessoas que têm fome. Os projetos precisam ser de urgência. Quem tem fome está mais adoecido, a droga está mais presente”. 
Bernadete Sousa
Integrante do Cpec Pé no Chão, no Siqueira

Sem renda e comida

Antes da pandemia, a situação já era complicada para a família Castro, moradora do Siqueira, mas nos últimos anos, se tornou ainda mais grave. Em uma vila de pequenos casebres, no final da Rua Alves Bezerra, a família se distribui. Nas casas, a matriarca Nair Paula de Castro, 74 anos, relata a batalha para conseguir garantir a renda que paga as contas e compra o alimento. 

Em 2021, muitos baldes de sopa que saiam da cozinha comunitária aliviavam a fome dos integrantes da família. O alimento era carregado no baldinho para ter rende mais porções, conta. Nair sobrevive com a aposentadoria e ajuda filhos e netos, que atuam em atividades informais, como a reciclagem, ou dependem de auxílios financeiros. 

A neta, Larissa Paula de Castro, conta que tem uma filha de 4 anos, recebe R$ 400,00 de auxílio e o vale gás. Para sobreviver, "puxa retalhos” - trabalho manual feito com tecidos cortados - e vende a R$ 8,00 o quilo dos retalhos puxados que servem para fazer estopa. 

“Eu não tenho condições. Tenho uma neta com esquizofrenia. Preciso comprar meus remédios e os dela, pois recebo alguns e outros não. Tem dias que tem comida, mas outros não. A sopa e as quentinhas ajudaram demais. Um balde dava para quatro pessoas”. 
Nair Paula de Castro
Aposentada

Para ir sobrevivendo, o “jeito” é comprar fiado e ir negociando. “Passa de três meses devendo, e depois vai pagando. A água eu não tenho sequer condição de pagar. É tudo caro e não tem dinheiro”, diz a aposentada.

 

Como será a investigação?

O mapeamento da fome no Grande Bom Jardim será executado por projetos de Extensão da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB) e Universidade Federal do Ceará (UFC). A instituição que propôs o levantamento é o  Centro de Defesa da Vida Herbert de Souza (CDVHS).

Na pesquisa em campo, entre os dias 24 de maio e 10 de junho, os pesquisadores em dupla irão visitar as 14 cozinhas para entrevistar os responsáveis pelos locais. A ideia é a partir desses equipamentos traçar um mapa desse trabalho, identificar além da localização, a condição de funcionamento, os recursos, famílias atendidas.  

Quatro pesquisadores sociais: Moisés Tavares e Geyse Anne (estudantes da Unilab) e Eduardo Marques e Raquel Vieira (jovens moradores do grande Bom Jardim) irão realizar a coleta das informações. “Nós vamos registrar o que está acontecendo. Mapear a localização. Ver o que está na zona mais precária e fora dessa zona”, completa a pesquisadora Raquel Vieira. 

Eles reforçam que participaram da coleta das informações, via entrevista, mas que além disso, serão feitas por outros integrantes pesquisas secundárias de dados e o trabalho de geoprocessamento de dados e espacialização de informações. 

Em que a pesquisa pode ajudar?

A finalidade da pesquisa é elaborar participativamente o Mapa do Enfrentamento à Fome do Grande Bom Jardim e contribuir com a elaboração e a execução de políticas públicas de segurança alimentar e nutricional para o território.

A proposta é compreender, a partir do mapa, como o fenômeno tem ocorrido no Grande Bom Jardim e, explica Moisés, ao garantir esses dados, poder contribuir também para que o poder público saiba da existência das cozinhas e os recursos necessários para que elas existam. 

A pesquisa deve gerar, dentre outros: 

  • Relatório/Mapa Participativo de Enfrentamento à Fome no Grande Bom Jardim;
  • Processo de participação social; 
  • Proposições e de recomendações gerais a partir dos achados; 
  • Produção e publicação de artigo científico e/ou relato de experiência. 

Ao final, será realizado um seminário para apresentação de resultados à sociedade e a intenção é que o poder público adote e implemente, em forma de políticas públicas, as recomendações.