Desigualdades históricas: como a justiça fiscal pode ajudar na assistência à população pobre no CE

Tributar menos consumo e serviços e mais o patrimônio e a renda são ações essenciais para diminuir a pressão de impostos sobre os mais carentes, segundo especialistas

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(Atualizado às 09:15, em 20 de Março de 2024)

O Ceará tem quase 1,5 milhão de famílias incluídas no Bolsa Família, segundo o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS). O Estado é o 3º do Nordeste em número de beneficiários do maior programa de transferência de renda do País, que garante suporte a famílias em situação de pobreza - aquelas em que a renda de cada membro é, no máximo, de R$218 por mês. 

Com tanta gente em vulnerabilidade econômica, sem saber se consegue comprar comida para casa, garantir a continuidade de políticas de Assistência Social é um desafio para a gestão pública. Desde 2017, o setor busca, sem sucesso, a garantia de pelo menos 1% da receita líquida do Governo Federal para financiar a área. Para intrincar ainda mais o cenário, os impactos da nova Reforma Tributária, aprovada pelo Congresso Nacional em dezembro, não são totalmente conhecidos pela área.

 

O Ceará é destaque nacional na política social, fornecendo complementos como o cartão Ceará Sem Fome, que oferece R$300 mensais a 53 mil famílias para aquisição de alimentos; o cartão Mais Infância, que contempla 150 mil famílias com R$100 mensais e inspirou a volta do Bolsa Família; e o Vale Gás Social, com 210 mil beneficiários. 

Além disso, o Fundo Estadual de Assistência Social (Feas) é um dos principais fundos priorizados pela Lei Orçamentária Anual no Estado. Hoje, ele é administrado pela Secretaria de Proteção Social (SPS).

O Diário do Nordeste verificou, junto ao Portal da Transparência do Governo do Estado, incremento nas despesas anuais previstas tanto para a SPS como para o Feas, sobretudo no período pós-pandemia de Covid-19. A SPS praticamente triplicou os recursos para custeio desde 2017 e, em 2023, pela primeira vez, ultrapassou R$1 bilhão. Dentro desse orçamento, o Feas passou de R$77 milhões, há seis anos, para R$269 milhões.

O Feas foi criado em 1995 e tem a função de cofinanciar projetos e benefícios em âmbito estadual e municipal para crianças, adolescentes, idosos e pessoas com deficiência. Entre as ações pagas por ele, estão o Mais Infância, unidades de acolhimento, abrigos regionalizados e residências inclusivas. 

Ainda em 2023, a SPS iniciou a universalização do cofinanciamento dos 117 Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas) municipais do Estado. Atualmente, também está construindo mais cinco unidades regionais. “Nosso objetivo é interiorizar a política da Assistência Social e combater as violações de direitos em todo o território do Estado do Ceará”, garante a titular da Pasta, Onélia Santana.

A despeito da expansão do orçamento, a integrante da Comissão Permanente de Ética do Conselho Regional de Serviço Social 3ª Região (Cress), Leiriane Araújo, avalia que os recursos ainda estão abaixo da real demanda da população cearense.

“Há desigualdades históricas que vão se acentuando num conjunto de crise econômica, política, social e sanitária que o país enfrenta. É preciso que o controle social busque ampliar e fiscalizar a aplicação dos recursos, principalmente no planejamento”, avalia. “Os municípios sempre colocam ao Estado a ampliação do cofinanciamento desses benefícios porque têm muitas dificuldades, e o valor repassado hoje é muito aquém da necessidade”.

O cenário se complica em razão do disposto nas Leis Complementares n.º 192/2022 e 194/2022, que alteraram a legislação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e prejudicaram as finanças estaduais - retirando cerca de R$ 2 bilhões do orçamento do Estado do Ceará em 2023, segundo a Secretaria Estadual da Fazenda (Sefaz) -, reverberando em diversas políticas públicas.

O Panorama Fiscal do Observatório de Finanças Públicas do Ceará (Ofice) também defende que mais receitas sejam arrecadadas e aplicadas em áreas como educação, segurança, saúde e previdência, sempre “em benefício da sociedade cearense”. Para isso, recomenda um planejamento estatal mais efetivo em tributação, arrecadação e fiscalização.

Lúcio Maia, pesquisador sênior do Ofice, pensa que o grande problema na manutenção de políticas públicas é a falta de recursos, uma vez que, atualmente, “100% das contribuições sociais - como o Programa de Integração Social (PIS) e a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) - são de competência da União, e 100% da arrecadação fica com ela”.

Na aprovação da Reforma, ficou decidido que serão unificados três impostos federais (IPI, PIS e Cofins), um estadual (ICMS) e um municipal (ISS) em dois tributos diferentes: CBS (de competência da União) e IBS (de Estados e Municípios). Porém, para Lúcio, isso pode agravar a situação de pessoas que necessitam de suporte governamental.

“Você vai retirar recursos da seguridade social porque está juntando tributos do orçamento fiscal e da seguridade social e colocando num só, e dificilmente você terá uma alíquota que vai compensar a junção desses dois orçamentos”, pensa.

O que tem que ser cobrado junto com a Reforma é a alteração do Pacto Federativo, para uma parte dessa arrecadação vir também para os Estados e Municípios, para aplicar em saúde, previdência e assistência social. Com isso, esse déficit que existe na seguridade social seria fechado e tornaria o orçamento superavitário.
Lúcio Maia
Pesquisador do Ofice

Durante seminário em setembro passado, o governador Elmano de Freitas reforçou a importância de investimentos entre Governo Federal, Estados e Municípios para o fortalecimento do Sistema Único de Assistência Social (Suas), almejando uma transformação geracional - no sentido de, no futuro, dar independência a essas pessoas por meio de qualificação profissional. 

Impostos pesam para os mais pobres

O cenário de privações é constatado, por exemplo, na comunidade Poço da Draga, na orla de Fortaleza. São cerca de 500 famílias carentes de assistência para crianças e idosos, como pontua Liduíno de Brito, diretor-geral da Fundação Sintaf, instituição de ensino e pesquisa constituída pelo Sindicato dos Fazendários do Ceará (Sintaf). Por lá, a entidade desenvolve um trabalho social que envolve ações de educação, saúde e lazer.

Para ele, o grande problema da miséria brasileira é a vertente tributária “errada” e “calcada no imposto sobre consumo”. “Ou seja, ela pesa quanto mais os pobres precisam comer, se vestir e consumir. Isso faz com que eles gastem tudo o que ganham com o essencial. Já para os que ganham muito, sobra”, ilustra.

Na análise de Liduíno, a Reforma Tributária se torna necessária pela recusa histórica da fatia rica do País em pagar mais impostos “para ver se o pobre se sobressai”. “O Brasil está nesse impasse desde a Constituição de 1988 porque os ricos não abrem mão de seus privilégios. Em vez de a arrecadação ser centrada no consumo, devemos eleger o imposto sobre a renda”, entende.

A opinião é compartilhada por Celso Malhani, diretor da Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (Fenafisco). Ele pondera, por exemplo, que o sistema de cashback criado pela Reforma, para devolver parte dos impostos a famílias de menor renda, ficou “abalada” porque também houve a isenção de produtos da cesta básica.

“O problema que vejo é que essa redução vale para os mais pobres, para a classe média e também para os mais ricos. Todos vão ter acesso à mesma isenção, quando ela era para ser só para os mais pobres”, avalia.

A função básica da Reforma é configurar os tributos para que eles realmente funcionem como instrumento indutor de redistribuição da renda e redutor das grandes diferenças sociais. Essa função não é só do Fisco, mas do Estado como um todo, ao estabelecer impostos, alíquotas e formas de tributação.
Celso Malhani
Diretor da Fenafisco 

O especialista explica que esse “peso” sobre os mais pobres se origina na cobrança igualitária de impostos, desfavorecendo a distribuição adequada da renda no País. No futuro, ele espera, a Reforma deve debater os impostos sobre patrimônio e riqueza, não apenas aqueles sobre o consumo. “Precisamos mudar. Não podemos ter formiguinhas carregando contêineres e elefantes carregando pétalas de rosas”, ironiza.

Fundo Regional é a saída?

Com a Reforma, os tributos serão cobrados apenas no local de consumo, e não mais no local de produção e de consumo, como é hoje.  Para evitar uma “guerra fiscal” e perdas na capacidade de investimento nos Estados, o Senado incluiu no texto da Reforma a criação do Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (FNDR), que promete incentivar o desenvolvimento e reduzir desigualdades entre regiões.

Na prática, o que for arrecadado nos Estados formará um agregado total do País, que depois será repartido seguindo novas regras sobre o tamanho da fatia que cada Estado irá receber. A União aplicará dinheiro de maneira gradativa, começando com R$8 bilhões em 2029 e podendo chegar a R$60 bilhões em 2043.

No entanto, para o Ofice, essa não é a melhor alternativa para compensar Estados e Municípios por possíveis perdas de arrecadação com a mudança no sistema de impostos. Para uma Reforma Tributária Progressiva, ou seja, que leve em conta a capacidade contributiva dos cidadãos, o Observatório fornece algumas diretrizes:

  • revogação do benefício fiscal para Juros sobre Capital Próprio (JSCP)
  • cobrança de Imposto de Renda sobre distribuição de dividendos
  • regulamentação do Imposto sobre Grandes Fortunas
  • alteração justa na tabela do Imposto de Renda de Pessoa Física (IRPF)
  • aprovação de Lei Orgânica dos Fiscos
  • análise e revogação de isenções fiscais
  • alteração do Pacto Federativo
  • criação do Fundo de Participação Social (FPS), retirado de parte dos recursos arrecadados pela União

Caso o FPS fosse implementado e já estivesse em vigor, por exemplo, o Ceará teria recebido R$ 7,19 bilhões em 2022, conforme projeção da entidade - sete vezes o orçamento atual da SPS. A capital Fortaleza também receberia um montante de R$ 1,12 bilhão. 

Educação fiscal

Para a concretização das mudanças trazidas pela Reforma, o Congresso Nacional ainda deverá aprovar, nos próximos anos, leis complementares para regulamentar as alterações.

Nessa linha, repensar a matriz de impostos brasileira é essencial para construir o projeto político de uma nação mais justa e igualitária, segundo Liduíno de Brito. Se não houver disposição para reorganizar totalmente o quadro, “o Estado continuará com os gastos de assistência social enquanto poderia investir em outras áreas”.

“Nós do Fisco podemos dar educação fiscal e contar essa história para todo mundo. Temos que mudar a tabela do imposto de renda: quem é rico é para pagar mais, e não nivelar todo mundo pelo consumo. Desonerando o pobre, ele passa a depender menos do Estado e a guardar sua renda”, finaliza.