Da marmita ao trabalho: capacitação profissional transforma vida de beneficiárias do Ceará Sem Fome

Receber um prato de comida é apenas o primeiro passo para dezenas de mulheres do bairro Parque São José, na periferia de Fortaleza. Lá, elas participam de um projeto de incentivo à gastronomia com a crença de que o ramo da alimentação pode, com pouco investimento, gerar emprego, renda e cidadania e incentivar a autonomia para as beneficiárias, muitas delas socialmente vulneráveis e vítimas de violências diversas.

Iniciado neste ano, o Chef(as) da Casa funciona na comunidade dos Canos, em Fortaleza. No local, são servidas 100 marmitas diárias através do Programa Ceará Sem Fome, do Governo do Estado. Após o almoço, parte das beneficiárias retorna à “sala de aula” para se capacitar não só em alimentação, mas também em direitos humanos e empreendedorismo.

Nos últimos meses, o Diário do Nordeste visitou quatro cidades do Estado para conhecer o trabalho de profissionais envolvidos no combate à fome e a recepção dos beneficiários. Assim, servimos o especial “Ceará: Comer e Curar”, que mostra os sabores e desafios do combate à insegurança alimentar e seus impactos em áreas como saúde, economia e educação.

A mulher sempre foi colocada como rival da outra. A gente é sempre cortada. A gente sempre é moldada. Precisamos nos sentir livres, mas isso só acontece com apoio. 
Fabíola Moreira
Coordenadora de projetos sociais

Segundo Fabíola Moreira, coordenadora de projetos do SOS Periferia, a ideia surgiu pelo contexto de insegurança alimentar escancarado durante a pandemia da Covid-19. Naquele período, a entidade distribuiu milhares de marmitas, kits de higiene e cestas básicas, mas permaneceu inquieta sobre o futuro de quem as recebia.

“Fizemos cursos de cabeleireiro, manicure e gastronomia. Nessa área, as pessoas se interessam mais porque conseguem fazer em casa, não precisa ser uma coisa grandiosa. Essas mulheres precisam sair da condição de só receber quentinha e serem protagonistas, ter seu dinheiro e comprar o que querem, porque o momento de assistencialismo tem que ser passageiro”, ressalta.

Assim, em vez de manterem seu papel de subordinadas na cozinha, podem assumir o papel de capitãs dos próprios rumos - e, em muitos casos, voltar a sonhar. É assim a felicidade estampada no rosto de Larissa Ingrid dos Santos, que costuma pegar cinco quentinhas para a família. “Estamos aprendendo muitas coisas, fico até emocionada. É muito bom aprender coisa nova, porque antes eu ficava só cuidando da casa”, admite.

Desempregada e tendo o Bolsa Família como única fonte financeira, ela elogia o suporte dado pelas quentinhas, especialmente pelo encarecimento de carnes e verduras, e projeta um negócio próprio para si no futuro. “Tô aprendendo a fazer salgado, bolo, doce. Penso em abrir um ponto pra vender merenda porque é um trabalho pra gente se manter, manter a casa. Tem que se virar de qualquer forma”, destaca.

A aposentada Maria Soares Alexandre, veterana que já trabalhou em três restaurantes na cidade, também estava parada quando recebeu o convite para participar da iniciativa. Mesmo com a experiência, ela reconhece que adicionou novos conhecimentos e passou a ajudar as companheiras de curso. Assim, também vão criando laços e formando uma rede de apoio.

“Moro sozinha, tenho duas filhas já adultas. Só vivia dentro de casa porque tenho problema no joelho. Tava me sentindo depressiva, sem ter com quem conversar. Aqui, as meninas são muito legais, eu sinto carinho”, afirma. Larissa Ingrid corrobora com a ideia porque, “mesmo morando no mesmo bairro, a gente não se conhecia, não tinha a oportunidade de conversar”.

Fabíola Moreira lembra que essa sociabilidade também impede que as participantes desistam e se sintam valorizadas, vistas e vivas. “Essas mulheres sofrem vários tipos de violência; não só física, mas principalmente financeira. Elas ficam presas e não sabem como sair. Ali, na roda de conversa, quando ouve o relato de outra pessoa que você nem sabe que passa por isso, não se sente mais sozinha porque tem outras mulheres te apoiando”.

Fome: substantivo feminino

Queremos que elas tenham outro olhar para se alimentarem e entendam que têm muito mais direitos do que pensavam que tinham. É muito mais do que um prato de comida, é um direito ao alimento, mas também à escuta, ao olhar, a sentir percebida. É conhecê-las para além do registro.
Lia de Freitas
Coordenadora do Ceará Sem Fome

A primeira-dama do Estado, Lia de Freitas, afirma que existe uma “feminização” da fome: de acordo com levantamento feito pelo Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (Ipece), 95,8% das pessoas beneficiárias do cartão Ceará Sem Fome são mulheres. Nas cozinhas solidárias, elas também são maioria nas filas. Segundo a coordenadora do Comitê Intersetorial do Programa, são elas que estão se privando de seus trabalhos para alimentar as famílias e, por isso, demandam inclusão socioeconômica. 

Esse, inclusive, é mais um eixo estimulado em parceria com empresas e organizações. Em junho deste ano, foi lançado o Ceará Sem Fome + Qualificação e Renda, que prevê investimentos de mais de R$56 milhões e mais de 40 mil vagas de capacitações.

Os cursos serão promovidos pelas secretarias estaduais, como as do Trabalho (SET) e da Proteção Social (SPS), e parceiros como a Associação Cearense de Supermercados (Acesu) e Solar Coca-Cola, que já estão envolvidos. O objetivo é que os participantes tenham acesso ao mercado de trabalho ou possam empreender e ter acesso a crédito.

Suporte na prática

Não basta apenas incluir as mulheres nessas formações, mas propiciar condições para sua permanência até a conclusão das atividades. As alunas do Chef(as) da Casa, por exemplo, podem levar os filhos ao local do projeto, onde são monitorados por uma pedagoga numa sala de jogos durante toda a tarde.

Enquanto isso, elas aprendem sobre confeitaria, panificação e mesa fria e se capacitam como cozinheiras ou auxiliares, a depender de sua aptidão. Não só. São conscientizadas sobre os próprios direitos da mulher e apresentadas a novos sabores, novos lugares e novos horizontes no mercado de trabalho.

“Muitas ficam prisioneiras da própria comunidade, mas quando mostramos que elas têm outros espaços, é diferente. Às vezes, a mulher não se permite. Tem muita coisa no ombro e não consegue voar. Queremos que, daqui, ela possa se permitir”, pensa Fabíola.