Na Praça dos Leões, cercada por prédios históricos, está erguida há quase 300 anos a igreja mais antiga de Fortaleza: a de Nossa Senhora do Rosário. Construído no século XVIII, o templo testemunhou a escravidão, a fé, a política e a história da cidade – e hoje depende de recursos na ordem de R$ 1,5 milhão para ser restaurado.
Por se tratar um patrimônio histórico tombado definitivamente pelo Estado em 1983 e pelo Município em 2006, qualquer reforma ou restauração na Igreja do Rosário precisa ser autorizada pelas Secretarias Municipal (Secultfor) e Estadual de Cultura (Secult).
Em maio deste ano, a Arquidiocese de Fortaleza, que coordena os templos católicos da capital, enviou um projeto arquitetônico aos órgãos de cultura. O documento foi aprovado, mas a instituição religiosa afirma não dispor do dinheiro necessário para executá-lo.
Luciano Pouchain, advogado da Arquidiocese de Fortaleza, confirma que a igreja está “aguardando patrocínio e/ou execução da obra pelo Governo do Estado ou Prefeitura de Fortaleza”, citando a legislação que respalda a ideia.
“O valor da obra é estimado em R$ 1,5 milhão, pelo orçamento apresentado pelos técnicos contratados. Conforme o art. 86 da Lei estadual 18.232/2022 e art. 27 da lei municipal 9.347/2008, solicitamos a execução da obra pelos poderes públicos e estamos aguardando retorno destes”, frisa.
Os artigos citados pelo advogado determinam que:
- Lei estadual 18.232/2022, art. 86: São deveres dos proprietários, possuidores e ocupantes dos bens acautelados: II – facilitar a realização de obras de conservação ou restauração de iniciativa do Estado ou por ele autorizadas;
- Lei municipal 9.347/2008, art. 27: Verificada a urgência na execução da obra de conservação ou restauração de qualquer bem protegido, poderá a Coordenação de Patrimônio Histórico-Cultural da Secultfor tomar a iniciativa de executá-las, ressarcindo-se dos gastos mediante ação administrativa ou judicial contra seu responsável, salvo comprovada ausência de recursos do titular do bem.
O Diário do Nordeste contatou a Secultfor e a Secult para saber se pretendem custear a obra, sozinhas ou em cooperação, e o que há de tratativas sobre isso. Até a publicação desta reportagem, o órgão municipal não enviou resposta.
Já a Secult informou, por nota, que "recebeu, em agosto de 2023, o pedido da Mitra Diocesana de Fortaleza para auxílio na realização de intervenções na Igreja de Nossa Senhora do Rosário, por meio do Ministério Público do Ceará (MPCE)".
A Pasta acrescenta que, naquele momento, "o pedido não apresentava as informações necessárias para que a Secretaria se pronunciasse, como o projeto de restauro e especificação das atividades a serem realizadas, dentre outros itens. Em outubro de 2023, os arquitetos contratados pela Diocese e responsáveis pela elaboração do projeto de restauro e reforma da Igreja foram recebidos pela Secretaria para orientações sobre a intervenção na Igreja".
A secretaria estadual confirma que o projeto de restauro foi recebido e aprovado "após análise técnica pela Coordenadoria de Patrimônio e Memória", mas ressalta que "o restauro de bens tombados de propriedade privada é de responsabilidade do proprietário do bem imóvel".
‘Ações de vandalismo’
Erguida em meados de 1730, a Igreja do Rosário é um dos patrimônios mais repletos da história de Fortaleza – mas sofre, hoje, com a ação do tempo “e de vandalismo”, como afirma o advogado Luciano Pouchain. Segundo ele, viabilizar a reforma é prioridade e “vontade da arquidiocese há alguns anos”.
“Contratamos arquitetos especialistas em restauros de imóveis tombados para produzir um projeto que revitalize todo o aspecto histórico. A execução desse projeto é de grande relevância para a sociedade, bem como para a Arquidiocese de Fortaleza”, frisa.
Luciano informa que, sem dinheiro garantido, não há previsão quanto ao início da obra; e que foram realizadas reuniões entre a instituição religiosa e as secretarias municipal e estadual de Cultura, “as quais estão buscando meios de execução do serviço”.
“Existe a possibilidade também de se conseguir recursos através da iniciativa privada, mas ainda não tivemos retorno positivo”, reconhece o advogado.
Das mãos de escravos
Registros históricos relatam que a Igreja do Rosário foi erguida por volta de 1730, em taipa (material à base de argila), e refeita em alvenaria duas décadas depois. Até a conclusão da Catedral Metropolitana de Fortaleza, a igreja foi a matriz da cidade.
Além disso, antes da construção do primeiro cemitério da capital, os falecidos eram sepultados no piso do templo, cobertos com camadas de terra ou madeira. Mas as celebrações, segundo relatos, eram impactadas pelo odor dos corpos em putrefação.
Essa memória segue permeando a estrutura do templo, que pode ser a edificação mais antiga de Fortaleza a manter a maior parte das características históricas originais, como pontua Jacqueline Holanda, professora no curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Fortaleza.
“A arquitetura da igreja é evidência da antiga tradição dos sepultamentos ocorrerem no interior destes espaços sagrados. Na maioria das cidades brasileiras do período colonial, a construção de cemitérios ocorreu apenas em meados do século XIX, como é o caso de Fortaleza”, frisa.
A arquiteta observa que o resultado disso é algo que tem se tornado comum em obras de restauro de edificações dessa natureza: “a exposição de antigas sepulturas, ou campas nos pisos, após os trabalhos arqueológicos”.
“Achados desse tipo foram feitos na Igreja do Rosário, o que comprova sua antiguidade e seu valor como documento histórico. Isso sem falar do túmulo do Major Facundo, que se encontra em uma de suas paredes”, rememora Jacqueline.
Para ela, garantir que a igreja seja restaurada, como patrimônio que representa, “é parte essencial da nossa identidade cultural”. A professora lamenta, contudo, que o caminho trilhado em Fortaleza é outro: o do esquecimento.
“O que percebemos é o abandono, o desrespeito que se reflete em perdas, muitas vezes irreparáveis. E isso afeta nossa autoestima, mesmo que não possamos perceber. Quando conhecemos o que são os bens históricos e seu significado, essa consciência estabelece laços que implicam pertinência e afetividade, o que leva ao reconhecimento e proteção.”
Jacqueline pondera também que “conservar é muito mais importante que restaurar, uma vez que a restauração implica a existência de danos, que nunca deveriam ter ocorrido”.
“Por isso é essencial a conscientização de que precisamos refletir seriamente sobre estratégias de conservação dos bens, para que não se tornem comuns os casos de edifícios históricos que chegam a um nível extremo de arruinamento, resultando em dolorosa perda”, avalia.
Como será a restauração
O restauro da Igreja do Rosário incluirá a recuperação das pinturas, de portas e janelas, da sacristia e, ainda, da escada principal de acesso ao templo, cujos degraus foram ocultados por obras na Praça General Tibúrcio (a Praça dos Leões).
“Na construção da igreja, a escada principal tinha mais degraus do que os existentes atualmente. Eles devem estar ocultos pela pavimentação da última reforma da praça”, pontua o projeto que detalha as intervenções, assinado por dois arquitetos.
“Será necessário, no início da obra, a prospecção para identificação dos degraus existentes e seu estado de conservação. A proposta prevê o rebaixamento da pavimentação, retornando os degraus a sua configuração original”, detalha o documento.
Sobre as pinturas, o projeto aponta que “na época da construção, predominava o uso da cor branca nas edificações”, o que será retomado na reforma. “As alvenarias internas também receberão a mesma pintura, com exceção do altar-mor, que apresenta pinturas decorativas a serem recuperadas”, complementa.
Para garantir o respeito às características originais da igreja, os arquitetos orientam que “toda área ou peça a ser restaurada deverá obrigatoriamente possuir o seu registro fotográfico, antes de qualquer intervenção”.
“Toda intervenção deve ser orientada pelo absoluto respeito aos valores estéticos e históricos do monumento, à sua integridade física e ao seu aspecto documental.”
As portas e janelas verdes de madeira, que conferem beleza e identidade ao prédio, serão recuperadas para “retirada cuidadosa de partes danificadas por vandalismo, atacadas por cupins ou apodrecidas em decorrência da má conservação”.
Por fim, a sacristia também receberá intervenções. “A sacristia está delimitada por uma divisória em madeira, que encontra-se em péssimo estado de conservação e deverá ser substituída”, destaca o projeto de restauro.