Um dos principais problemas de saúde em todo o mundo, o tratamento contra o câncer não pode esperar. O tempo é crucial para as chances de um cuidado bem-sucedido. Mas, no Ceará, tem se tornado mais comum os pacientes atendidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) precisarem aguardar mais do que a lei prevê para ter a primeira consulta após receberem o diagnóstico da doença.
Só no período de janeiro a abril de 2023, praticamente metade das pessoas que iniciaram o tratamento estiveram nessa situação e estavam esperando pelo início do tratamento há mais de 60 dias. Foram 1.970 pessoas nos quatro primeiros meses deste ano — ou 49% do total de 4.010 que iniciaram o procedimento nesse período.
Os dados analisados pelo Diário do Nordeste foram coletados no Painel Oncologia do Datasus, que cruza informações do Sistema de Informação Ambulatorial (SIA), do Sistema de Informação Hospitalar (SIH) e do Sistema de Informações de Câncer (SISCAN).
Entre os anos de 2013 e 2022, em média 3.758 pacientes esperaram mais do que o prazo legal de 60 dias para iniciar o tratamento de câncer a cada ano. O prazo legal está previsto na Lei 12.732/12, em vigor desde maio de 2013, e vem sendo desrespeitado em cada vez mais casos desde 2019.
A análise mostra que esse é o maior número desde 2017, considerando o mesmo período de todos os anos. Observando o tempo de espera detalhado, também é possível observar que a quantidade de pessoas que esperaram 91 a 120 dias, 121 a 300 dias e 301 a 365 dias atingiu o maior patamar desde 2013.
Em entrevista ao Diário do Nordeste, a secretária executiva de Atenção e Desenvolvimento Regional da Saúde do Ceará, Joana Gurgel, afirmou que houve uma redução de mais de 70% das vagas para consultas iniciais ofertadas pela Prefeitura de Fortaleza para a Central de Regulação da Secretaria da Saúde do Estado do Ceará (Sesa).
Em janeiro de 2022, eram ofertadas 1.620 vagas, enquanto em janeiro de 2023 essa quantidade caiu para 450. Outro fator para a demora do atendimento, segundo a secretária, é a demanda represada devido à pandemia de Covid-19.
A Secretaria Municipal da Saúde de Fortaleza (SMS) confirma a redução de vagas e argumenta que havia "um excedente muito grande de consultas" e "um problema de capacidade".
Segundo a coordenadora de Regulação, Avaliação, Controle e Auditoria das Ações e Serviços de Saúde da Secretaria Municipal da Saúde de Fortaleza (SMS), Helena Paula Guerra dos Santos, o corte teria sido necessário para o atendimento integral dos pacientes. "Tentando otimizar e garantir o tempo adequado, a gente readequou (as vagas) para que a capacidade instalada atendesse aquela quantidade de pacientes", afirmou.
A gestora reforçou que o Ceará tem apenas nove estabelecimentos de oncologia públicos enquanto deveria ter 18, um para cada 500 mil habitantes, como determina a portaria nº 140, de 2014, do Ministério da Saúde. Das nove unidades, sete estão na Capital.
Ela afirma que cerca de 50% da demanda para o serviço oncológico de Fortaleza é de pacientes vindos do Interior. "A grande produção de oncologia está recaindo sobre Fortaleza, e não temos cofinanciamento estadual", complementa, além de apontar que essa sobrecarga cria uma "competição pelos mesmos estabelecimentos". "Acho que o estado tem que olhar com muita clareza e muita seriedade para esse cenário", diz a coordenadora.
No aguardo há 4 anos
No caso de Francisco Francineide de Sousa, morador do município de Russas, a espera vem se arrastando por ainda mais tempo. Ele ainda não começou tão aguardado tratamento para o câncer de próstata que descobriu em um exame de rotina.
"Desde 2019, venho pelejando por uma vaga e não tem. (...) O meu tem jeito, mas tem que ter tratamento, e a gente não pode pagar", conta Francisco Francineide de Sousa.
Após viajar até a Capital na esperança de iniciar o procedimento na última terça-feira (25), ele ouviu mais um "não" e teve mais um adiamento. O idoso ouviu que teria que esperar o próximo mês para a unidade ter a medicação. Agora, a nova data é dia 7 de agosto de 2023.
Mas essa é uma doença silenciosa e precisa ser tratada rápido, porque cada segundo conta. Por isso viemos aqui dar o nosso apoio, porque é uma causa urgente
Pai e filha estavam na audiência pública promovida pelo Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) na quarta-feira (26) para cobrar a manutenção e ampliação da rede de atendimento oncológico no Ceará.
Avanços e retrocessos
Apesar de conquistas em termos de avanços na tecnologia e no acesso a medicamentos pelo SUS, o oncologista clínico e professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) Markus Gifoni aponta que houve retrocesso na logística que dificultam a marcação das primeiras consultas.
"Acho que precisamos equacionar com urgência, porque está se transformando em um problema grave aqui na oncologia no Ceará já tem alguns meses. Não é uma coisa que está acontecendo pontualmente agora e realmente causa muita preocupação para quem lida com câncer", afirma.
O levantamento do Diário do Nordeste aponta que, considerando os dados de janeiro de 2013 a abril de 2023, os pacientes que precisaram de radioterapia foram os que mais esperaram pela primeira consulta. Foi o caso de 57% deles.
O médico lamenta essa realidade, que, de acordo com ele, não está relacionada à falta de acesso ao equipamento. “Temos profissionais, temos hospitais, temos serviços, e esses serviços estão ociosos, ao mesmo tempo em que os pacientes estão esperando muito. É difícil de aceitar essa situação”, afirma Gifoni.
Conforme o Diário do Nordeste noticiou na quinta-feira, 20 de julho, o Centro Regional Integrado de Oncologia (Crio), em Fortaleza, uma das principais portas de entrada para pacientes com câncer no Estado, suspendeu o atendimento de pacientes encaminhados pelo SUS no último dia 11 por falta de verba.
Com a pandemia de Covid-19, o médico aponta que pacientes passaram a procurar especialistas já em um estágio mais grave da doença. Por isso, o sistema de saúde deveria "ter uma porta mais aberta possível" para o paciente oncológico.
"Fazia sentido termos o melhor acolhimento possível para que esse atraso não tornasse ainda mais cruel essa situação. E foi exatamente nesse momento em que tivemos essa dificuldade", complementa.
Acesso aos serviços
Ao Diário do Nordeste, Helena Paula Guerra dos Santos, coordenadora de Regulação, Avaliação, Controle e Auditoria das Ações e Serviços de Saúde da Prefeitura de Fortaleza, explicou que o "grande gargalo" para os pacientes do Interior é que a maior parte da rede está na Capital.
"O paciente de Fortaleza tem um fluxo bem mais facilitado que o do Interior, que tem que peregrinar na rede do interior e pedir para uma central estadual que está na Sesa. A Sesa recebe as vagas que a gente dispõe em Fortaleza e disponibiliza. Parte (dos pacientes) vai para Sobral, parte vai para o Cariri e parte migra para Fortaleza", explica.
A coordenadora destaca que Fortaleza vive um déficit de capacidade instalada, assim como um déficit financeiro. "Isso vem sendo coberto, teve um aporte recente, mas ainda sim está limitado para a quantidade, principalmente quando a gente olha para os dados epidemiológicos. Sabemos que a expectativa, devido à transição demográfica e epidemiológica e ao estilo de vida que a gente tem, é de que o aumento de câncer é uma realidade no próximo triênio", afirma.
Sesa anuncia novas vagas para tratamento
Na audiência pública realizada pelo MPCE, a Secretaria de Saúde do Estado do Ceará (Sesa) informou que a partir da próxima quarta-feira, 2 de agosto, serão ofertadas 1.265 novas vagas por mês para o atendimento de pacientes com câncer no Instituto do Câncer do Ceará (ICC). Não foi divulgada ação emergencial para o Crio.
A médio e longo prazos, a Sesa destacou o plano de expansão da rede de atendimento oncológico. A secretária executiva de Atenção à Saúde e Desenvolvimento Regional da Sesa, Joana Gurgel, comunicou que o Hospital e Maternidade Dr. Agenor Araújo, de Iguatu, irá receber serviço de quimioterapia, hormonoterapia e cuidados paliativos.
Representante da Secretaria Municipal da Saúde de Fortaleza (SMS), Helena Paula Guerra dos Santos apresentou os dados epidemiológicos e de infraestrutura da Capital. Em sua fala, ela destacou a sobrecarga do sistema de saúde de Fortaleza e o deslocamento de recursos para cobrir a necessidade da oncologia, uma vez que a Capital recebe pacientes do Interior.
Fortaleza é extremamente solidária. Ela entende o papel dela como capital, como polo de referência. Nunca vai deixar de haver necessidade, esse é o modelo nacional, isso se repete em outras capitais. Todo mundo tem uma concentração, tem um polo tecnológico maior. Só precisamos partilhar o planejamento e discutir a pactuação. E deixar claro que estamos usando recurso além na oncologia.
Avaliação sobre a audiência
Daniele Castelo Branco, gestora da Associação Nossa Casa e coordenadora da Rede Mama, esteve presente na audiência pública. Para ela, foi "muito positivo" reunir os interessados no assunto para tentar solucionar o problema da oncologia.
"Mas, para mim, o que ficou de mais forte é que precisamos de uma ação emergencial, para o momento. (...) Para mim, a melhor saída seria retornar esse teto financeiro que foi retirado dos serviços, os 20%, que foi onde tudo começou, e, ao mesmo tempo, pactuar com o Ministério da Saúde um aumento do recurso", complementou.
A redução de 20% no repasse das verbas municipais foi informada em ofícios enviados ao Ministério Público do Ceará (MPCE) e ao Ministério da Saúde (MS) pela Rede Cearense de Combate ao Câncer de Mama (Rede Mama), em junho; e pelo movimento Todos Juntos Contra o Câncer (TJCC), no dia 13 deste mês, conforme mostrou reportagem do Diário do Nordeste.
"O que é mais triste para mim, enquanto representação de associação de pacientes, é ver que os pacientes estão na fila morrendo enquanto eu tenho serviços com capacidade instalada para atender", afirma Daniele Castelo Branco.
Transparência
Para essa matéria, foram analisados dados sobre o tempo para início do tratamento oncológico no SUS desde que o paciente recebeu o diagnóstico. Essa informação foi combinada com o filtro do ano de início do tratamento. Esses dados estão disponíveis no Painel Oncologia Brasil, disponíveis no TabNet, do DataSUS. Disponibilizamos os dados neste link para garantir transparência e permitir outras análises.