A quantidade de afastamentos do trabalho no Ceará por questões relacionadas à saúde mental — como ansiedade generalizada, fobia social, depressão e burnout — aumentou 46% em 2023, na comparação com o ano anterior. No ano passado, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) concedeu 8,1 mil benefícios acidentários ou previdenciários no Estado, enquanto em 2022 esse número foi de 5,5 mil.
Esse aumento ocorre após uma redução de 5% em 2022, quando comparado a 2021. No primeiro ano da série histórica enviada pelo Instituto ao Diário do Nordeste, 5,8 mil benefícios haviam sido concedidos pelos CID-10 — o código internacional de doenças — relativos a transtornos mentais e comportamentais e esgotamento. A média de afastamentos mensais em 2021 foi de 489. Esse número reduziu para 464 em 2022 e depois saltou para 678 em 2023.
Os transtornos mentais e comportamentais estão entre as principais causas de afastamento do trabalho no Ceará. O ranking do Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho (SmartLab) aponta que essas doenças foram responsáveis por 11% dos casos em 2022 — correspondendo a um em cada nove afastamentos naquele ano, o mais recente disponível na plataforma.
O contexto em relação ao trabalho cria um cenário propício para o adoecimento mental, explica Iratan Bezerra de Sabóia, doutor em Psicologia e professor do mestrado de Psicologia e Políticas Públicas da Universidade Federal do Ceará (UFC), no Campus de Sobral.
Três fatores são citados pelo docente: o fato de as pessoas passarem cerca de metade do dia no trabalho, uma série de pressões sofridas pelos trabalhadores e a lógica de se trabalhar com algo que permita acesso ao mínimo para a subsistência — e não necessariamente por interesse na área em que se atua.
O professor ainda acrescenta o atual ritmo de vida “muito intenso” e a cobrança por se manter sempre atualizado quanto às tendências de mercado e aos processos de trabalho. Tudo isso enquanto há um volume de informações que “sequer conseguimos cognitivamente processar e reter”.
Isso sem falar em toda a pressão social que sofremos hoje porque a posição social está muito vinculada ao nosso poder de consumo — que, no final das contas, está vinculado ao trabalho. Então, o trabalho é também uma medida social, de bem-aventurança social. Todo esse caldo é muito propício para o adoecimento. Não é à toa que depressão, ansiedade e burnout são considerados males do século, estão entre as doenças que mais afetam a população no mundo e em especial no Brasil.
SAÚDE MENTAL E MERCADO DE TRABALHO
Em novembro de 2023, após 24 anos, o Ministério da Saúde atualizou a lista de doenças relacionadas ao trabalho, com incorporação de 165 novas patologias, como Covid-19, doenças de saúde mental e distúrbios musculoesqueléticos. Com a mudança, a quantidade de códigos de diagnósticos inseridos no documento passou de 182 para 347.
Entre essas novas doenças na lista está a síndrome de burnout. Incluída na 11ª Revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID 11) como um fenômeno ocupacional, ela consta na CID 10 entre os “problemas relacionados com a organização de seu modo de vida”. No Ceará, a quantidade de afastamentos por esse motivo aumentou a cada ano, entre 2021 e 2023.
Considerado uma síndrome laboral, o burnout foi a causa de 70 benefícios concedidos pelo INSS no Ceará em 2023. Destes, foram 47 benefícios previdenciários — sem relação com o trabalho — e 23 acidentários — em que há relação com afunção. Iratan Bezerra de Sabóia aponta a dificuldade para se estabelecer um nexo causal entre o adoecimento mental e o trabalho como causador desse quadro. Apesar disso, ele afirma que esse entendimento tem mudado ao longo do tempo.
Durante muito tempo foi muito complicado, principalmente em termos legais, termos uma associação entre a saúde mental e os impactos que o trabalho tem na saúde mental. Isso porque a relação de causa e efeito entre um acontecimento e a provável doença mental, o agravamento em relação à saúde mental do trabalhador, é meio distante. É diferente de uma causa física.
Sobre a quantidade de benefícios concedidos pelo INSS no Ceará ao longo dos últimos anos, o docente destaca o salto “de uma ordem absurda” entre 2022 e 2023. Foram 2,5 mil afastamentos a mais entre os dois anos. “É uma tendência que temos hoje em dia, inclusive podendo nem só estar relacionado ao trabalho, mas ao adoecimento mental de uma forma geral”, comenta.
Sabóia aponta, ainda, o impacto da desregulamentação do mercado e da precarização do trabalho para a saúde mental, em um contexto de crescente informalidade e no qual o trabalhador precisa do salário para sobreviver enquanto os empregadores têm “um exército de reserva disponível”.
“No cenário de uma economia fragilizada, o primeiro corte feito é na mão de obra. Agora, imagina esse trabalhador sendo demitido. O que ele vai fazer? Como ele vai levar comida para casa? Obviamente, isso causa uma pressão nessa pessoa que vai impactar a saúde mental dela”, reflete.
O professor também destaca o direito ao uso do tempo, que é prejudicado quando é necessário dedicar “um tempo excessivo ao trabalho para garantir minimamente uma condição material para a família”.
Toda a conjuntura na qual as pessoas sentem que trabalham muito, ganham pouco e a vida não melhora tem ainda outro impacto, segundo o professor: uma virada de radicalização em torno do espectro social e guinadas autoritárias na política em todo o mundo.
“Está intimamente ligado a essa resposta inadequada que temos tido no campo do trabalho, do que o trabalho devolve para a pessoa não só como bem material, mas como bem psicológico. De a pessoa enxergar algum sentido no seu trabalho ou ter condição de ter outros espaços sociais e tempos sociais para se fazer como sujeito”, complementa.
“ATÉ O DESCANSO TEM CERTA CULPA”
O ápice do cansaço — mental e físico — para Felipe* (nome fictício) foi em outubro de 2023. Um dia, acordou triste, sem ânimo. O corpo e a mente estavam cansados. Com dores de cabeça, no ouvido e no corpo, sensibilidade ao barulho e falta de paciência, ele avisou ao chefe que precisava ir a uma emergência hospitalar.
“Se você não teve febre e não está com coriza, podemos descartar algumas síndromes gripais. Me parece, portanto, que você está encaminhando para um burnout”, disse o médico, ao ouvir a lista de sintomas. Mas Felipe não podia parar. O máximo que conseguiu foi um atestado de três dias — o total de faltas que poderia ter em um mês. “Na segunda-feira da semana seguinte, tive que retornar ao trabalho, porque, enfim, a vida demandava. E fui tentando lidar com esse cansaço”, lembra.
Recém-concursado, Felipe é professor da rede pública de um município cearense. Ele já era bolsista de doutorado antes de assumir o cargo com jornada de oito horas diárias e, quando estava focado apenas na pós-graduação, conta que tinha tempo para o lazer. Com o novo emprego e a distância percorrida de casa até a escola, a rotina mudou, o tempo para dedicar à escrita da tese ficou mais escasso e a preocupação passou a rondar seus pensamentos.
“Estou trabalhando, não tenho tempo para escrever. Quando tenho tempo livre, no final de semana, minha cabeça já está muito estressada, muito cansada, meu corpo está cansado. Fico desejando descanso. Só que até o descanso tem certa culpa, porque minha cabeça não para, ela fica: ‘poxa, você tem que estar escrevendo, tem que aproveitar esse tempo para escrever, tem que aproveitar esse tempo para ler, para continuar a tese, ou não vai dar tempo’. Então, toda essa preocupação foi se somatizando ao longo desse último ano”, narra.
Felipe cita a infraestrutura da escola — que não oferece “o mínimo de conforto” para o professor e para o estudante — e questões sociais relacionadas à realidade dos alunos como pontos que dificultam o trabalho.
A prefeitura, por mais que se preocupe com isso, quer resultados. E os resultados são quantificáveis, não são qualitativos. Ela quer saber se o aluno está tirando nota 10, se a escola está sendo aprovada, se a quantidade ‘X’ de alunos está sendo aprovada. Não pode reprovar aluno. Todas essas questões tiram um pouco da nossa saúde mental, vão consumindo você aos poucos.
Depois da conversa com o médico no ano passado, o professor passou a intensificar as atividades físicas e pensar menos na tese, uma vez que o estado probatório não permite afastamento para finalizar o doutorado. Em consequência, o processo de escrita ficou mais lento e ele solicitou, pela segunda vez, o adiamento do prazo para a defesa.
“Estou no aguardo, nessa ansiedade de saber se o programa vai ou não aceitar esse pedido. Até lá, (estou) tentando escrever no ritmo que posso, sem violentar o meu corpo, sem violentar a minha mente”, afirma.
TIPOS DE BENEFÍCIO E DIREITOS DO TRABALHADOR
Os dados concedidos à reportagem pela assessoria de imprensa do INSS dizem respeito a benefícios previdenciários (código B-31) e acidentários (código B-91) concedidos no Ceará por incapacidade temporária e permanente. O juiz do Trabalho em Sobral Raimundo Dias de Oliveira Neto, gestor do Programa Trabalho Seguro (PTS) no Tribunal Regional do Trabalho da 7ª Região (TRT Ceará), explica haver uma “diferença fundamental” entre os efeitos jurídicos deles.
Enquanto o benefício previdenciário é concedido devido a doenças comuns, sem relação com o trabalho, o funcionário tem direito ao benefício acidentário em casos de acidentes de trabalho ou doenças relacionadas à função. Nesse último caso, é reconhecido o nexo causal entre a doença e a atividade desempenhada no trabalho.
O magistrado explica que, nos casos de acidente de trabalho ou doenças relacionadas à atividade, o empregado só poderá voltar às funções após a alta pelo perito médico do INSS. Além disso, após o retorno, o trabalhador tem garantida a manutenção do contrato de trabalho por pelo menos um ano. Essa determinação consta no artigo 118 da Lei 8.213, que dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social.
“Caso a empresa, antes de completado este período, dispense o trabalhador sem que ele tenha cometido qualquer falta grave, deverá indenizar o período restante da estabilidade provisória, mediante pagamento dos salários, 13º salário, férias mais ⅓ e FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço)”, explica. O período de estabilidade pode ser maior, se isso for previsto na convenção coletiva de trabalho ou em acordo coletivo aplicável à categoria profissional.
Por outro lado, quando o nexo de causalidade não é reconhecido, o benefício é concedido como doença comum e o trabalhador não tem direito à estabilidade no emprego nem aos depósitos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) nesse período.
É importante destacar que, quando a Previdência não reconhece o nexo de causalidade entre a doença e a atividade laboral, o empregado pode judicializar o caso na Justiça Federal, contra a Autarquia Previdenciária, reclamando o enquadramento como doença relacionada ao trabalho, para que obtenha, se acolhida a ação judicial, o benefício previdenciário com direitos mais amplos.
O juiz também afirma que as empresas podem ser responsabilizadas pelo adoecimento mental dos trabalhadores, “desde que incorram em práticas que contribuam para tal”. Assédio moral praticado por gestores ou chefes imediatos estão entre os exemplos mais comuns — como quando há cobrança com rigor excessivo de produtividade ou tratamento clara e comprovadamente discriminatório.
“É comum que, em casos tais, os trabalhadores venham à Justiça do Trabalho pedir indenizações por danos morais, materiais ou existenciais, inclusive pensão vitalícia, em casos mais extremos”, complementa.
Os casos mais comuns relacionados à saúde mental que chegam à Justiça do Trabalho por meio de ações ajuizadas pelos trabalhadores estão relacionados principalmente à depressão e à síndrome de burnout, segundo Raimundo Neto. “Infelizmente, também tem aumentado o número de suicídios”, acrescenta.
“Segundo a International Stress Management Association (ISMA), com base em dados da Associação Nacional de Medicina do Trabalho (ANAMT), o Brasil ocupa o 2º lugar no ranking mundial de casos de burnout, com 30% dos trabalhadores atingidos pela doença, atrás apenas do Japão (70%)”, comenta o juiz do Trabalho.
Em busca de promover ações de conscientização e prevenção de acidentes e doenças do trabalho, Raimundo Neto explica que o Tribunal Superior do Trabalho (TST) implantou o Programa Trabalho Seguro em 2012, do qual é gestor regional ao lado da desembargadora Regina Gláucia Cavalcante Nepomuceno. O projeto realiza eventos em diferentes datas, como o Dia Nacional de Combate ao Assédio Moral no Trabalho, em 2 de maio, e o Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio, em 10 de setembro.
Além disso, há o Grupo de Trabalho Interinstitucional do Programa Trabalho Seguro (Getrin), do TRT Ceará, que reúne entidades parceiras e representantes de empregadores e empregados. Outra iniciativa, ainda em fase embrionária, é o projeto CIPA Escolar, que visa promover, em salas de aula, discussões sobre temas relacionados a questões tratadas em Comissões Internas de Prevenção de Acidentes e de Assédio (CIPAs).
“Acreditamos firmemente que essa atuação conjunta com a sociedade nesse trabalho extrajudicial de conscientização há de contribuir como política pública de prevenção aos acidentes de trabalho e doenças ocupacionais”, afirma Raimundo Neto.
* O Diário do Nordeste optou por utilizar nome fictício para não identificar o entrevistado em cenário de vulnerabilidade psicológica