Ceará tem 60 mil crianças sem pai na certidão e impactos podem durar por toda a vida

Números vêm crescendo e provocam mobilização do sistema de Justiça para regularizar documentos

Maior que Senador Pompeu, Alto Santo, Icapuí e Viçosa do Ceará. A população acumulada de crianças sem registro do nome do pai na certidão de nascimento no Ceará, nos últimos 9 anos, é superior à quantidade de habitantes de 155 cidades do Estado. Uma multidão de quase 60 mil pessoas sem referência paterna oficial, cuja ausência pode reverberar por toda a vida.

Os dados são da Central de Informações do Registro Civil (CRC Nacional) e foram compilados pela Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil), através da ferramenta “Pais Ausentes”.

Segundo a Arpen, quando o pai for ausente ou se recusar, o registro de nascimento pode ser feito somente em nome da mãe. No ato de registro, ela também pode indicar o nome do suposto pai ao cartório, que dará início ao processo de reconhecimento judicial de paternidade.

Por ano, segundo a média dos nove anos, cerca de 7 mil crianças são registradas sem o pai no Ceará todos os anos. O último com menor registro foi 2017, mas ainda assim com mais de 3 mil faltas.

A proporção em relação ao total de nascimentos no Estado também vem aumentando e preocupa o poder público. Isso motiva inclusive a criação de mecanismos como os mutirões de regularização, como lembra a assessora de relacionamento com o cidadão da Defensoria Pública do Ceará (DPCE), defensora Aline Pinho.

Uma delas é a campanha nacional “Meu pai tem nome”, realizada por todas as Defensorias do país. No Ceará, a mobilização ocorreu ontem, véspera de Dia dos Pais, em Fortaleza, Sobral (na região norte), Iguatu (no centro-sul), e em Juazeiro do Norte, Crato e Barbalha (no Cariri). 

Para a defensora, os números ainda são “assustadores”. “Alguns são por desconhecimento, outros porque a mãe não chega a contar ao pai por algum contexto da relação, mas a maioria é por abandono. Eles sabem, mas não querem reconhecer”, enumera os motivos. 

Segundo ela, com a maior conscientização todos os anos, muitos homens têm participado dos mutirões voluntária e espontaneamente, para reconhecer: “eu sei que é meu”. Entre os benefícios da inclusão do nome do genitor, ela cita:

  • fortalecimento de vínculos
  • decisões favoráveis em processos de pensão alimentícia
  • acesso a herança
  • benefício em caso de óbito

Quando há dúvida sobre a paternidade atribuída pela mãe, o homem também pode realizar o exame de DNA de forma voluntária. A partir do resultado, a Defensoria dá o devido encaminhamento ao caso. 

“Todas as pessoas que se inscrevem passam pelo setor psicossocial, que pode incluir acompanhamento prévio ou posterior. Também fazemos oficinas de pais e filhos para reconstruir os laços familiares”, afirma Aline.

E se engana que apenas bebês e crianças podem ser beneficiadas com a regularização. Aline explica que a inclusão do nome do pai “pode ser realizada em qualquer momento da vida”.

São pequenas informações que as pessoas desconhecem. Muitas vezes, se vincula o registro só a pensão, mas essa não é a vinculação que queremos. Nós trabalhamos e lutamos por uma paternidade responsável, com a efetiva participação na vida dos filhos. A gente consegue reconstruir a dignidade de criança até adulto. 
Aline Pinho
Defensora pública

Sobrecarga da mulher

A negligência paterna acaba sobrecarregando a carga mental e o trabalho de mulheres na criação dos filhos. Se, no parto, elas se tornam automaticamente mães, a construção da paternidade não é certa nos homens, como pensa Tuany Moura, doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e pesquisadora de masculinidades.

“Se alguém cuida mais, alguém cuida menos - ou nem cuida”, provoca, lembrando justamente a necessidade de iniciativas públicas para estimular os pais a participar da educação dos filhos.

Segundo ela, historicamente, a construção social masculina valoriza o homem viril, bem sucedido, que pode utilizar a violência como linguagem e atrelar sua sexualidade ao poder. Assim, nem sempre estão no lugar do cuidado porque não deixam de fazer por si para fazer pelo outro. 

Essa “responsabilidade materna pela irresponsabilidade paterna” fica mais evidente em relações casuais, quando toda a vida da mulher pode mudar. Já a dele costuma seguir normalmente, inclusive com a possibilidade de negar a paternidade. 

Em outros casos, ela nota “filhos órfãos de pais vivos”. Quando o casal se separa, alguns homens tendem a achar que perderam a obrigação paterna e rompem os laços com as crianças, entendidas agora como uma obrigação social e jurídica. 

“Não adianta só esses homens estarem na certidão. O que queremos fazer, de fato, com esses mutirões? É só legitimar que eles existem?”, questiona Tuany.

Novas masculinidades

Apesar dessa construção histórica, a pesquisadora compreende que também há homens em busca de adjetivar a parentalidade. “É uma paternidade responsável, não a tradicional vinculada somente a fazer o filho e provê-lo economicamente”, define. 

Para ela, a sociedade tem evoluído no sentido da maturidade masculina. Ela cita que, antes, muitos deles se “infantilizavam”: quando a mulher se torna mãe, o pai começa a disputar a atenção e os cuidados da mulher. Agora, a nova masculinidade demonstra maior maturidade e inteligência emocional. 

“É muito positivo quando esses pais começam a repensar sua masculinidade no momento da paternidade. Quem não teve pai presente ou uma relação profunda com o seu tenta fazer diferente. Eles querem construir uma nova imagem, proteger, dar o melhor. Quando se veem nesse lugar, eles procuram formas de estar presentes”, entende. 

A socióloga ainda acredita que os meninos que estão crescendo com o bom exemplo em casa se tornarão emocionalmente capazes e seguros de boas relações, de se sentirem amados e de não reportarem masculinidades ruins. 

“É uma nova liberdade, uma guinada para outra masculinidade que sente, abraça, demonstra carinho, gentileza e firmeza. É um pai presente, que está ao lado construindo”, compreende.