Rua Fausto Cabral, número 116, bairro Papicu, em Fortaleza. Uma casa de 13 metros de frente, com um portão pequeno para acesso de pedestre e um maior para a garagem, uma árvore na frente. Encravada entre avenidas como a Engenheiro Santana Jr e Alberto Sá, a edificação, há décadas, foi espaço de um trágico e violento episódio. Nela a farmacêutica cearense Maria da Penha Fernandes, ícone do combate à violência contra as mulheres, sofreu uma tentativa de assassinato por parte do ex-marido que a deixou paraplégica ao atingi-la com um tiro enquanto ela dormia. Agora, a ressignificação desse espaço pode começar a ocorrer.
O Governo do Ceará desapropriou o local para abrir o Memorial Maria da Penha. No imóvel, cuja área total é de 415,90 m², Maria da Penha foi vítima, em 29 de maio de 1983, quando tinha 38 anos, do então marido (e posteriormente ex-marido) o colombiano Marco Antonio Heredia Viveros. Na década de 1990, ele foi condenado pela tentativa de homicídio (à época, o feminicídio ainda não tinha sido tipificado no Brasil) da esposa na própria residência.
No dia 3 de junho deste ano, o Governo do Ceará deu o primeiro passo para a implantação do memorial no imóvel. O decreto 36.043/2024, publicado no Diário Oficial do Estado, determinou a desapropriação da edificação com a finalidade de implantar o equipamento. A casa pertence à Maria da Penha, segundo o Instituto Maria da Penha, ONG sem fins lucrativos fundada pela farmacêutica e que atua no enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher, e passará para o poder público.
Na norma, o Governo do Ceará declarou a utilidade pública do imóvel e justifica que Maria da Penha “é considerada o maior símbolo de combate à violência contra a mulher no Brasil” e que existe “a necessidade de reconhecer como patrimônio histórico o imóvel onde a mesma residiu”.
O intuito da ação, registra o decreto, é “atribuir um novo significado ao imóvel, diante da importância da memória coletiva e individual, na formação de uma sociedade mais justa e igualitária para as mulheres”. A desapropriação está a cargo da Procuradoria-Geral do Estado (PGE), por meio da Comissão Central de Desapropriações e Perícias da Procuradoria do Patrimônio e do Meio Ambiente. As despesas da desapropriação serão custeadas pelo tesouro estadual. Mas não constam o valor que será pago pelo imóvel.
“Sonho antigo de Maria da Penha”
“Este é um sonho antigo de Maria da Penha e do Instituto Maria da Penha, ressignificar o local onde aconteceram as tentativas de feminicídios contra Maria da Penha e torná-lo um espaço de resgate da história dos movimentos de Mulheres, da luta histórica de Maria da Penha e da criação da Lei Federal 11340”, informou ao Diário do Nordeste a cofundadora e superintendente geral do Instituto Maria da Penha, Conceição de Maria Mendes de Andrade.
Ela explica que a ação é uma iniciativa do Ministério das Mulheres e o Governo do Ceará “deu um passo importante na concretização deste sonho, que foi conceder ao imóvel o título de utilidade pública”. Isso ocorreu, diz Conceição, “quando da visita da Ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, a Fortaleza, no último dia 3 de junho”.
“Nosso desejo é que este seja um espaço de pesquisa, informação, cultura, capacitações, etc, ou seja, um espaço físico que abrigará em sua estrutura a história e a trajetória das conquistas das mulheres do nosso país e um registro da vida e luta de Maria da Penha, uma cearense que entrou para a história como ícone no enfrentamento à violência doméstica contra as mulheres e hoje tem o seu nome escrito na Constituição Federal do Brasil”, destacou.
O Diário do Nordeste entrou em contato com o Governo do Ceará, na quarta-feira (5), buscando mais informações sobre essa iniciativa. Mas, em nota, o Governo informou apenas que “o reconhecimento da relevância do local e da preservação da memória foi dado por meio da declaração de utilidade pública” e acrescentou que os próximos passos relacionados à implantação e ao funcionamento do Memorial Maria da Penha “serão divulgados posteriormente”.
O que aconteceu com Maria da Penha na casa?
Maria da Penha Maia Fernandes nasceu em Fortaleza, em fevereiro de 1945, e é farmacêutica bioquímica. No decorrer da vida, devido à busca por Justiça em um caso em que foi a vítima, tornou-se uma mulher símbolo da luta contra a impunidade da violência doméstica, dando inclusive nome à Lei Federal 11.340/2006 que gerou mecanismos mais efetivos para a punição de agressores de mulheres no âmbito doméstico.
Segundo o Instituto Maria da Penha, a farmacêutica casou-se em 1976 com o colombiano Marco Antonio Heredia Viveros. Eles tiveram três filhas.
Em 1983, quando moravam no imóvel no bairro Papicu, em Fortaleza, que agora será desapropriado, Viveros tentou assassinar Maria da Penha. Nos autos do processo que foi julgado na 1ª Vara do Júri de Fortaleza consta que, aos 38 anos, Maria da Penha foi baleada com um tiro nas costas, enquanto dormia.
A agressão, registra o Instituto Maria da Penha, a deixou paraplégica devido a lesões irreversíveis na terceira e quarta vértebras torácicas, laceração na dura-máter e destruição de um terço da medula esquerda.
Na casa, conforme consta no processo que tramitou e foi julgado na 1ª Vara do Júri de Fortaleza, consta que além dos dois, viviam as três filhas do casal. Na noite da ocorrência do tiro, também dormiam no imóvel duas empregadas domésticas em um quarto separado da casa por um portão de ferro, próximo à área de serviço.
Na época, foi cogitada inicialmente a versão que Marco Antônio declarou à polícia de que a família teria sido vítima de uma tentativa de assalto. Mas, no decorrer da apuração, foi constatado que a versão não se sustentava.
Luta contra a impunidade e repercussão internacional
Conforme o Instituto Maria da Penha e os registros da imprensa da época, Marco Antônio só passou pelo primeiro julgamento em 1991, oito anos após o crime. Naquela ocasião foi sentenciado a 15 anos de prisão, mas a pena foi reduzida para 10 anos, pois, segundo o Código Penal Brasileiro, a pena é diminuída de um a dois terços quando o crime é tentado, mas não consumado.
A defesa apelou da sentença e então passaram-se anos até que, em 1996, Marco Antônio foi novamente julgado pelo caso. Ele foi condenado a 10 anos e 6 meses de prisão. Mas, novamente, não saiu preso do tribunal. Apelou, agora, para uma instância superior.
O caso Maria da Penha e a impunidade do agressor ganhou repercussão internacional. Em 1998, o caso foi denunciado por Maria da Penha, pelo Centro para a Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e pelo Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM) à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH/OEA).
Com a mobilização, o Brasil foi responsabilizado pela Corte Internacional em 2001, por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica praticada contra as mulheres brasileiras.
Viveros só foi preso em 29 de outubro de 2002, na cidade de Natal. Em março de 2004, foi para o regime semiaberto e, em fevereiro de 2007, conseguiu a liberdade condicional.
Relevância da Lei Maria da Penha
Nesse contexto, em 2022, foi formado um Consórcio de ONGs Feministas para a elaboração de uma lei de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. Esse Consórcio formulou a proposta de um projeto de lei, apresentado em 2004 à Secretaria de Política para as Mulheres do Governo Federal. O governo, que estava sob a primeira presidência de Lula, instaurou o Grupo de Trabalho para elaborar um Projeto de Lei que tratasse do combate e prevenção da violência contra a mulher.
O Governo então apresentou à Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 4.559, em dezembro de 2004, que tramitou na casa legislativa e depois no Senado, sendo sancionado por Lula - Lei Federal Maria da Penha 11.340 - em agosto de 2006.
A concepção da norma respondeu às demandas históricas das mulheres, e a Lei Maria da Penha é no Brasil o mecanismo objetivo que estabelece dispositivos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Dentre outros pontos, a lei indica a criação de Juizados contra a violência doméstica e familiar da mulher, estabelece medidas de assistência e proteção à mulher em situação de violência doméstica e familiar.
Processo tem guarda permanente
No Ceará, o Tribunal de Justiça (TJCE) informa que na 1ª Vara do Júri da Comarca de Fortaleza, unidade onde o processo tramitou, o mesmo encontra-se “definitivamente arquivado”, tendo sido declarado recentemente, segundo a instituição, “de guarda permanente”.
De acordo com uma resolução do TJCE, “os documentos e processos de guarda permanente constituem patrimônio cultural nacional e compõem o fundo arquivístico histórico do Poder Judiciário, devendo ser custodiados em locais com condições físicas e ambientais adequadas, preferencialmente do próprio órgão”.
No “Espaço da História FCB”, exposição que está em cartaz no Fórum Clóvis Beviláqua, em Fortaleza, há uma cópia integral do processo do caso Maria da Penha em exibição. A iniciativa conta a história da Comarca de Fortaleza e apresenta processos historicamente importantes.
Além dessa cópia integral, diz o Tribunal, “as peças principais foram impressas em braille e, também, estão expostas no Espaço da História, que pode ser visitado no horário de funcionamento do Fórum Clóvis Beviláqua.