“Vermelho Monet”, do cearense Halder Gomes, une pintura e música clássicas em drama sobre arte

Com estreia nos cinemas nesta quinta-feira (9), novo filme do cineasta aborda temas ligados à arte e ao mercado

Reconhecido pelas comédias de sucesso como “Cine Holliúdy” e “O Shaolin do Sertão”, o cineasta Halder Gomes lança nesta quinta-feira (9) um filme que pode, à primeira vista, parecer totalmente distante da obra pregressa do cearense. No entanto, “Vermelho Monet” — drama sobre o universo das artes visuais, com referências diversas à pintura e música clássicas — e os longas cômicos do diretor guardam, como ele compartilha ao Verso, pontos em comum.

O primeiro deles, explica Halder, é que tanto as comédias quanto o novo trabalho vêm de gostos pessoais que ele nutre desde a infância. Em “Vermelho Monet”, a trama acompanha as conexões entre um pintor frustrado que está perdendo a visão (Chico Diaz), uma jovem atriz que precisa se provar em um projeto gravado em Portugal (Samantha Müller) e uma ambiciosa marchand em busca de mais poder e dinheiro (Maria Fernanda Cândido).

Projeto começou há mais de 10 anos

O projeto acompanha Halder desde, no mínimo, 2010, ano em que ele começou a esboçar ideias para um roteiro que transcorresse no universo da pintura. “É um assunto pelo qual tenho paixão há muito tempo, desde a infância, já estava ali o desejo de fazer alguma coisa disso em cinema”, explica.

Em 2012, levando a comédia “Cine Holliúdy” a um festival em Portugal, se apaixonou por Lisboa e quis que a história desse projeto ocorresse na cidade portuguesa. “Como é um filme que sempre andou na paralela das comédias, eu nunca tive com ele uma escala de ‘comecei’ ou ‘vou terminar’. Ele sempre foi feito em fragmentos”, descreve.

Um tratamento mais avançado de roteiro foi feito somente em 2019, após visitas de Halder a Paris e a Auvers-sur-Oise, cidade na qual Van Gogh morreu — ou seja, após mais lançamentos de sucesso na comédia como “O Shaolin do Sertão” (2016), “Os Parças” (2017) e “Cine Holliúdy 2: A Chibata Sideral” (2018). Na época, “Vermelho Monet” já estava financiado e, então, teve finalização da escrita com consultoria da cearense Michelline Helena.

Com o último tratamento de roteiro pronto, as gravações começaram em Lisboa. “Vermelho Monet” é uma coprodução entre a cearense ATC Entretenimento, a paulista Glaz Entretenimento e a portuguesa Ukbar Filmes. Do Ceará, além de Halder e Michelline, há a produtora Patrícia Baia, a diretora de arte Juliana Ribeiro, Herlon Robson na trilha sonora e Érico Paiva no desenho de som, por exemplo.

“Filmar fora tem suas complexidades logísticas, mas acabou se tornando um grande intercâmbio cultural, profissional e artístico, a troca com Portugal foi muito interessante. Eles são muito parceiros, competentes, colaborativos. Achei muito parecido com o Ceará, com as parcerias que tenho. Me senti muito em casa”
Halder Gomes
cineasta

Um sentimento de familiaridade também despontou no artista em relação ao universo retratado no longa. “A pintura e a comédia moram muito no meu coração. Para mim, seria estranho eu fosse fazer um filme sobre guerra, no fundo do mar, sei lá, algo que não fizesse parte do meu mundo, de paixão”, aponta. “A comédia é como se fosse o universo ao qual pertenço. Esse outro universo pertence a mim de uma forma muito íntima, particular”, reflete.

Do brega ao erudito, referências de Halder Gomes

As referências artísticas de “Vermelho Monet”, no entanto, vão além das artes visuais. “Um personagem, para existir, pede outro, de forma que eu consegui unir muitas paixões dentro desse universo, que são a literatura, a música, o teatro, o cinema, além da própria pintura”, explica Halder.

O filme, inclusive, é dividido em seis partes denominadas como “movimentos”, todos batizados a partir de vocabulário da música clássica: allegro, aubade, rapsódia, noturno, ária e tombeau.

O conhecimento dessa arte é fruto, compartilha, da época em que assistia ainda criança ao programa “Concertos para a Juventude”, transmitido na TV Globo. Na mesma época, ouvia na rádio artistas do “brega”, como Odair José, Diana e Fernando Mendes.

“Meu mundo musical é construído entre o brega e, depois de uma linha bem tênue, o erudito”, atesta. “Tudo são referências de coisas que gosto muito. Gosto e escuto muito as músicas que estão (em “Vermelho Monet”), assim como as dos filmes de comédia”, segue o diretor.

Mesmo as “reconstruções” de pinturas que ocorrem em “Vermelho Monet” — que referencia obras como “Os Amantes”, de Magritte, e “O Beijo”, de Klimt, em diferentes planos — não são novidades na trajetória de Halder, que cita exemplos do tipo em comédias.

“Se você prestar atenção, tem muita referência. No ‘Cine Holliúdy 2’, o Véi Góis (personagem de Chico Diaz) é uma alusão a Van Gogh. Se você mergulha no universo de ‘O Cangaceiro do Futuro’, toda a casinha da Mariá é construída com a luz do holandês barroco, com referências a Vermeer e Rembrandt. A batalha em ‘Cine Holliúdy 2’ tem um brilho de Chico da Silva”, elenca.

“O que quero mesmo é oferecer ao público a possibilidade de experimentar outras coisas. Na pré-estreia (de 'Vermelho Monet') no (Cineteatro) São Luiz, tive feedback numa quantidade tão absurda que, para minha surpresa, foi maior do que quando lanço comédia”, celebra. “Achei que o filme fosse talvez fechado, mas não, ele dialoga, prendeu todo tipo de espectador que estava lá. O público pode absorver isso”, confia.

Força e diversidade do cinema cearense

Ainda em 2024, além da atual obra, Halder ainda estreará “C.I.C. - Central de Inteligência Cearense”, nova comédia dele com o ator Edmilson Filho que pega referências de filmes de espionagem. 

Os dois são alguns dos lançamentos de obras cearenses do ano, que ainda contará com estreias de filmes como “A Filha do Palhaço”, de Pedro Diógenes, e “Quando Eu Me Encontrar”, de Michelline Helena e Amanda Pontes, nos cinemas — além da participação inédita de um longa do Estado no Festival de Cannes com “Motel Destino”, de Karim Aïnouz.

“E tem o filme do Petrus (Cariry, ‘Mais Pesado É o Céu’) também correndo festivais pelo mundo, espero muito filmar ‘O Shaolin do Sertão 2’ jajá.. Não é sendo bairrista, não, mas nosso cinema é o mais instigante do País todo. A diversidade, a pluralidade e a variedade das coisas que são feitas são tão ricas”, atesta.

“O cinema cearense é muito instigante, bem executado, criativo, variado, bom. Sou muito fã do nosso cinema, dos meus colegas e do trabalho que fazem. São filmes que se estabelecem atemporais, são muito potentes. O filme do Déo (Cardoso), “Cabeça de Nêgo”, é uma potência! Tenho muito orgulho das coisas que todos fazem”, celebra.

Crítica: “Vermelho Monet” pende entre mundos e abordagens

A fala de Halder Gomes sobre a “linha tênue” entre referências ditas “eruditas” e “populares” na trajetória é reveladora acerca do fato do mesmo diretor que lançou “Cine Holliúdy”, comédia com apelo do público, surgir agora com “Vermelho Monet”, drama repleto de referências de nicho à arte clássica.

Na trama, Johannes Van Almeida (Chico Diaz) é apresentado como um pintor genioso, até agressivo, que busca incessantemente inspiração em meio a um diagnóstico de acromatopsia, distúrbio visual que causa problemas para enxergar cores e níveis de luminosidade.

Em paralelo, o filme apresenta Antoinette (Maria Fernanda Cândido), uma poderosa negociadora de obras de arte que circula por espaços de elite e busca formas de ganhar mais dinheiro e reconhecimento.

As duas figuras parecem, de início, pertencer a tempos e espaços distintos. Enquanto Johannes, as roupas dele e até a casa-ateliê onde vive parecem de um passado distante, Antoinette soa e surge mais contemporânea.

No entanto, tanto elas quanto a atriz Florence Lizz (Samantha Müller) — uma influenciadora brasileira que vai para Portugal estrelar um filme biográfico sobre a poeta Florbela Espanca e se vê julgada no processo — não somente coexistem como se cruzam em uma trama que se debruça no mercado da arte.

As discussões vão de temas mais concretos, como a lavagem de dinheiro desse circuito, a reflexões mais profundas, sobre autenticidade, inspiração e autoria. Tanto em termos de trama quanto de forma, o filme parece pender entre essas duas abordagens: a mais concreta, realista, e a outra, mais simbólica, até fantástica. 

O pêndulo entre ambas assumido na obra parece emular o limbo — termo usado mais de uma vez nos diálogos da obra — dos próprios personagens, que se encontram como que fora de tempo, entre o original e a cópia.