Uma das expoentes da chamada Geração Mimeógrafo, Ana Cristina Cesar (1952-1983) tanto revolucionou o campo da poesia que continua a influenciar pessoas dentro e fora dos círculos literários. É o caso da atriz, professora e diretora carioca Laura Nielsen, cujo contato mais profundo com a literata se deu neste momento de quarentena.
“Durante um longo período eu fiquei completamente sem trabalho porque as minhas atividades ficaram suspensas. Então me deparei com um livro que eu ganhei, mas nunca tinha lido, reunindo toda a obra da Ana Cristina Cesar”, conta.
Foi assim que, junto ao desejo de fazer um mestrado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, ela concebeu “Ana C.”, montagem cuja temporada de apresentações acontece a partir de 18 de março, seguindo até o dia 28.
Totalmente virtual e com ingressos gratuitos, o espetáculo será exibido pelo Youtube. Os links estarão disponíveis 30 minutos antes de cada sessão nas páginas do projeto no Facebook e Instagram. Também haverá debates nos dias 20 e 27, após a apresentação das 21h, com os professores Heleine Fernandes e Luiz Guilherme Ribeiro Barbosa, especialistas na obra da poeta.
A montagem foi contemplada pela Lei Aldir Blanc e possui uma interessante particularidade: une as linguagens do teatro e do audiovisual ao exibir o processo de criação da dramaturgia, que coincidiu com a mudança de Laura Nielsen para um novo endereço no Rio de Janeiro.
Atravessamentos
Ao Verso, a atriz – que divide a direção da peça com a fotógrafa e diretora de fotografia Thaís Grechi – afirma que o trabalho é sobre os sentimentos que lhe atravessaram durante a leitura da poesia de Ana Cristina Cesar.
“Inclusive, vejo muita conexão da escrita dela com o próprio momento de quarentena. Por isso fez muito sentido para mim a criação desse projeto. Ela fala muito sobre confinamento, sobre essa sensação de inadequação, a nossa falta de controle sobre a vida, a respeito do que acontece à nossa volta. Além disso, é uma obra muito urbana”, enumera.
“Então, quando me vi confinada numa cidade grande e que o movimento de repente parou, a poesia de Ana C foi um alento. Ao mesmo tempo, a escrita dela tem muito humor, um certo deboche, que também me interessava como um contraste para essa densidade toda, já que é uma poética muito auto-reflexiva, trazendo questões profundas, existenciais”, completa.
A princípio inscrita para ser realizada de modo presencial, logo a montagem teve que se reinventar para o formato digital devido ao agravamento da pandemia de Covid-19. Foi assim que Laura decidiu que a apresentação da peça aconteceria em sua própria casa.
“Ana C se coloca pessoalmente na obra dela, fala em primeira pessoa, então tem um tom confessional e um aspecto intimista. Achei que faria todo o sentido eu fazer o espetáculo dentro do meu espaço de intimidade", considera.
"Me mudei no início de janeiro, bem no começo do processo de criação do espetáculo, e esse dado da mudança acabou entrando no trabalho. E isso também tem muito a ver com Ana porque ela fala muito sobre viagem e deslocamento espacial em sua poética”.
Na peça, o processo de chegada no novo lar é apresentado a partir de pequenos vídeos gravados durante o momento de traslado. Essas breves produções pré-gravadas criam uma espécie de documentário. Alguns desses vídeos-diários aparecem durante a apresentação da montagem, entrecortando o registro ao vivo e o gravado.
Laura, assim, dimensiona que o jogo de edição acontece com muita força porque há uma edição que acontece ao vivo e outra prévia, concatenando as filmagens.
“Foi a primeira vez que eu tive essa oportunidade de experimentar também o trabalho de edição e a presença da Thaís Grechi foi fundamental nesse processo. A minha experiência é totalmente ligada ao teatro, e ela é ligada ao cinema, é diretora de fotografia, então tem um olhar mais ligado a essas questões da imagem”, explica.
“Não é uma peça de teatro filmada. É uma peça on-line que está num lugar bem novo, acho que para mim e para todo mundo. Estamos descobrindo essa nova linguagem que se criou a partir da pandemia”, complementa, não sem antes sublinhar o quanto todo o trabalho foi bastante desafiador.
Encenação da intimidade
Encarando Ana Cristina Cesar como uma poeta que cria uma encenação da intimidade, Laura Nielsen explica que a montagem está longe de contar a história de vida da escritora. Ela revela mais o encontro de uma artista que deseja escrever uma peça sobre a obra de Ana C. E, nesse lugar, a atriz vai se colocando pessoalmente no trabalho.
Por outro lado, a peça pode trazer um novo olhar sobre uma poética já consagrada, embora ainda não tanto conhecida do público maior. “O nome dela é muito popularizado, as pessoas já ouviram falar dela, mas tem muita gente que ainda não a leu, não conhece de fato sua obra”, situa Laura. “Acho que essa é uma maneira de trazê-la para essa geração atual”.
Embora ainda não tenha perspectiva quanto a outras temporadas do projeto, a atriz e diretora adianta que a iniciativa já rende frutos pela própria urgência que carrega ao congregar o olhar urgente de Ana C sobre a vida e as relações, o que pode suscitar novos panoramas ao público.
“A importância de voltar à obra da poeta hoje tem a ver com a forma como ela encara a própria existência, o modo como vê o mundo, com a percepção de que a gente, de fato, não tem o controle sobre tudo. Assim é a vida, somos seres vulneráveis, que estamos à mercê de algo que é maior. E isso é particularmente muito forte nesse momento em que estamos todos confinados, vivendo essa tragédia que é a pandemia”, conclui.
Serviço
Espetáculo “Ana C.”, com Laura Nielsen
Dias 18, 20, 21, 27 e 28 de março, às 19h e 21h. Nos dias 20 e 27, haverá debate após a sessão das 21h. Após a temporada, o espetáculo filmado e legendado ficará disponível até 15 de abril no canal do Youtube Ana C. Ingressos gratuitos. 40 minutos. Links disponíveis 30 minutos antes de cada sessão nas páginas do projeto no Facebook e Instagram. Classificação etária: 14 anos