Não é segredo que o cearense parece onipresente. É quase como se tivesse a habilidade de tornar o mundo menor. E não importa em qual ambiente, cultura ou território esteja. Imprime, com bastante distinção, o nosso jeito de ser. Movimenta as realidades, convoca ao desenvolvimento. Em semelhante compasso, carrega a graça de observar o cotidiano e a força de inspirar pelo trabalho. Uma vontade ininterrupta de fazer.
Na história do Troféu Sereia de Ouro, as personalidades homenageadas desfilaram aos olhos da sociedade atestando essa indiscutível premissa. Presentes em diferentes segmentos profissionais, à frente de inovadores projetos e iniciativas, consolidam-se como modelo de esforço e talento além-fronteiras.
Agora, juntamente a eles, também se unem outros personagens com histórias de superação, resiliência e capacidade de fomentar novos e ricos panoramas. Destacados neste ano especial na trajetória da comenda do Sistema Verdes Mares, contribuem para confirmar o Ceará como um celeiro cada vez mais rico em possibilidades que levam a vida para frente, suscitando múltiplos horizontes, seja em quais forem os meios de atuação. São 50 histórias inspiradoras, de áreas diversas, e você conhece aqui quatro delas, de gente dedicada a levar o jeito de ser cearense além.
Superar a si mesmo
É o caso de Maria Maviniê Mota. Natural de Pedra Branca, ela é uma das principais responsáveis por fazer com que as tradicionais garrafinhas de areia colorida, típicas de nossa cultura, ganhem o mundo. Um trabalho que soma quase quatro décadas de dedicação e diversos atravessamentos. “Já conheci mais de 30 países, representando o Ceará em eventos e feiras de artesanato”, conta a artesã.
Sua iniciação nessa arte se deu em 1984, durante uma viagem a Aracati. Maviniê lembra de ter ficado encantada com todas aquelas cores e a forma de produção das peças. “Tinha coqueiros, dunas e animais desenhados. Eram imagens muito simples, mas, para mim, bastante fora do comum, porque não imaginava como se podia, dentro de uma garrafinha, colocar qualquer figura que fosse”, recorda.
Encantada, resolveu aprender o ofício. E, tão logo se viu capaz de realizar belos objetos, quis passar o conhecimento adiante. Hoje, é coordenadora da Associação Grão de Cor – grupo de produção de areia colorida, composto por 24 mulheres, especialistas nessa arte que embeleza produtos diversos.
“Quem trabalha nessa área e é do nosso grupo tem uma renda bem razoável. Gerar emprego para quem não tem oportunidade na vida é muito interessante”, diz a artesã, que, no princípio da carreira, saía catando garrafas na conhecida “rampa do Jangurussu” (maior lixão de Fortaleza, hoje inativo, localizado na periferia da cidade), como forma de prover o sustento e a inspiração artística.
Não à toa, dona de uma trajetória repleta de superações e conquistas, Maviniê comemora o fato de ser uma das 50 referências do povo cearense, presentes na campanha especial do Sereia de Ouro neste ano. “Nós, cearenses, encantamos o mundo com nossas areias, nossa alegria e simplicidade. Fiquei muito emocionada pela homenagem. Não tenho palavras para agradecer”, considera.
Vigor e tenacidade
O sentimento de pertencimento, que aumenta o orgulho por ser do Ceará, também está presente no cotidiano de Fah Fonseca. A paratleta – única corredora cadeirante que representa o Estado em nível nacional e internacional – coleciona feitos, medalhas e inúmeras alegrias. Mas, para chegar ao posto que hoje ocupa, precisou vencer grandes desafios.
Fah nasceu com mielomeningocele, má-formação congênita rara, em que a medula espinhal de um bebê em desenvolvimento não se estrutura adequadamente. Logo que chegou ao mundo, necessitou fazer uma cirurgia de emergência para minimizar os efeitos do distúrbio. O procedimento permitiu que ela andasse até os 13 anos. Depois daí, a esportista precisou se adaptar.
“Foi muito traumático e desafiador, tanto para mim quanto para a minha família, principalmente porque eu era e ainda sou a única deficiente entre nós”, detalha. “Então, minha tia, vendo tudo aquilo, foi atrás de uma vaga no Hospital Sarah Kubitschek, um centro de reabilitação da cidade. Cheguei lá aos 17 anos. Acho que aprendi a viver, de fato, ali, porque passei a ver outros deficientes”, relembra.
Nas dependências do local, ela também conheceu o atletismo, modalidade que transformou sua história. No esporte, Fah conquistou 24 recordes brasileiros e representou o País na Paralimpíada Rio 2016. Além disso, obteve o segundo lugar no Japão e na meia-maratona de Los Angeles (EUA); segundo lugar também na maratona dos Estados Unidos; e segundo e terceiro lugar, por dois anos consecutivos, na maratona de Lisboa (Portugal).
“Digo para todo mundo que o único sonho que eu conseguia alimentar era que, antes de morrer, queria conhecer Jericoacoara. Nunca pensei que eu fosse para o Japão três vezes, que me tornaria atleta maratonista mesmo. Então, o esporte me trouxe a vida, o autoconhecimento. Não tem nada que pague esse ventinho que eu sinto praticando atletismo. É muito libertador”, situa.
Fah ainda percebe que essa capacidade de reinvenção e coragem para vencer os desafios é algo bastante característico do cearense. Está no sangue. “Durante os três anos que eu morei em Santos (SP), para me aperfeiçoar no esporte, todo mundo falava muito dessa força do cearense e eu ficava muito orgulhosa, muito ‘cheia de asas’, porque gosto muito daqui”, rememora a atleta.
Por sua vez, o destaque da campanha do Sereia de Ouro a essa campeã da vida alavanca algo ainda maior. “Ter sido escolhida me faz ver que esse reconhecimento não é destinado apenas aos grandes, mas para os pequenos também, àqueles que fazem a diferença onde vivem e ainda não são vistos e ouvidos no dia a dia”.
Valor à memória
Da força incansável no atletismo para a garra de preservar a memória e a cultura de um povo. É este o expediente de Alemberg Quindins, um multiprofissional – autor de processos criativos, músico por formação popular, pesquisador autodidata, pintor de arte naïf, escritor, comunicador, educador popular, empreendedor social e gestor cultural. Ele tem como um dos maiores méritos ser um dos criadores da Fundação Casa Grande – Memorial do Homem Kariri, em Nova Olinda.
A instituição sem fins lucrativos, criada em 1992, é um potente espaço de vivência para crianças e jovens, recebendo visitas de pessoas do mundo inteiro. O objetivo é dos mais importantes: resgatar o legado do povo da região, o Vale do Cariri, e ser um centro de memória.
“O projeto começou a partir de uma pesquisa na Chapada do Araripe, feita por mim e minha companheira, a arqueóloga Rosiane Limaverde. Era um estudo a respeito do homem na região, desde quando ele está no local e quais os mitos que habitavam o território”, explica Alemberg Quindins.
O intenso mergulho por entre sítios mitológicos e arqueológicos, religiosidades, ciências e costumes revelou a necessidade de ecoar os saberes, estendendo uma vasta herança cultural. Assim, contando com esmerada equipe, Alemberg provoca no público frequentador da Fundação Casa Grande a sede por artes, comunicação, mitologia, arqueologia, entre outros assuntos, tudo de forma lúdica e inventiva.
“A memória Kariri nos transporta aos tempos mais longínquos da humanidade na terra, da vida no planeta. Por que a Casa Grande tem uma importância nesse processo? Ela é uma guardiã disso, trabalhando esses aspectos na infância. Não é possível encontrar em nenhum outro lugar o que a gente trabalha na Fundação”, dimensiona.
Povoado pela satisfação de ter construído algo que inspira e revigora a cultura local, Alemberg acredita que essa alegria que sente é uma marca do cearense e que as dificuldades são matéria-prima para a invenção.
“Nunca falo de sofrimento e de tristeza na Casa Grande, e eu vejo isso também nas crianças que acolhemos. Somos um território lindo e de um povo alegre. Onde você chega, percebe que os cearenses são brincalhões, divertidos. Isso é lindo. Além disso, ainda temos a fama de trabalhadores e de contadores de histórias”, ressalta.
Participar da campanha do Sereia de Ouro é visto como uma homenagem a essa memória Kariri. “Para mim, isso representa a força dessa região, da Chapada do Araripe”, complementa.
Cuidado ininterrupto
A potência do trabalho de Alemberg e da própria geografia onde atua também pode ser observada na trajetória de Adriana Forti. Desde pequena, a médica sonhava em cuidar da saúde do outro, vocação reforçada pelo desejo da mãe de que ela ingressasse na área em que poderia aperfeiçoar os conhecimentos.
Graduou-se na Universidade Federal do Ceará em 1971, seguindo para residência médica no Rio de Janeiro, estudando no Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia Luiz Capriglione (Iede), nos anos de 1972 e 1973. Na sequência, cursou Mestrado em Endocrinologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Doutorado em Endocrinologia pela Escola Paulista de Medicina, tornando-se ainda membro da Academia de Medicina.
Tantos títulos acenderam a chama por repassar saberes para as novas gerações – é também professora titular da UFC – e, devido a uma oportunidade, atuar junto à saúde pública no Ceará.
“Fiz parte da equipe que elaborou o plano do primeiro Governo Tasso Jereissati. Ele convidou alguns professores da Universidade para participar desse grupo e eu fui uma delas”, conta.
“Quando terminei todo aquele trabalho, me convidaram para continuar. Então, pensei que poderia fazer alguma coisa na área em que atuo, pois iria ter condições técnicas de planejar e realizar de fato”.
Foi assim que resolveu voltar as atenções para as pessoas com diabetes num momento em que pouco se falava a respeito da doença no Brasil. Nesse movimento, formou equipe interdisciplinar e empreendeu pesquisas, capacitou profissionais.
“A partir daí, vimos a necessidade de ter para onde mandar os pacientes que eram atendidos nas unidades básicas – naquela época, postos de saúde – para que, quando eles tivessem uma complicação, pudessem ser atendidos por um especialista”.
Assim nasceu, em 14 de abril de 1988, o Centro Integrado de Diabetes e Hipertensão, equipamento da Secretaria de Saúde do Estado do Ceará do qual Adriana é diretora e uma das fundadoras. Atualmente, a instituição – modelo em nível nacional – tem mais de 50 mil pacientes cadastrados, atende cerca de 250 crianças com diabetes tipo 1 e 500 com puberdade precoce e baixa estatura.
“O diabético precisa conhecer a doença, tem que se empoderar para fazer o autocuidado. Nós trabalhamos para motivá-lo, desde pequenos, a ter uma vida com qualidade. A coisa que eu me sinto mais feliz é ter tido a chance de empreender esse trabalho de educação”, expressa.
“Por ser professora – nisso de compartilhar conhecimentos, modificar pessoas no sentido de aprendizado, de serem críticos, de mudar as coisas – levei muito essas questões para o Centro. Na realidade, foi uma das coisas que eu mais me entusiasmei na saúde pública, essa possibilidade”.
Colecionando inúmeros sonhos para o Estado e o Brasil no que toca à seara em que trabalha, ao mesmo tempo que repleta de emoção pela história de tantos que ajudou a construir – com respeito e responsabilidade para com a vida – Adriana expressa a gratidão pelo reconhecimento atribuído a ela com a homenagem do Sereia de Ouro.
“A iniciativa está de parabéns. Achei tão bonito o fato de ser 50 pessoas nos 50 anos do prêmio. Até brinco que cada um é uma velinha desse bolo”, compara.
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