Saraus feitos por poetas da periferia de Fortaleza são tema de websérie

Fomentado pela Lei Aldir Blanc, projeto engloba seis episódios, disponíveis no YouTube, buscando compreender as histórias, experiências e práticas dos saraus autônomos e independentes das periferias da Capital

A turma se articula e se achega. São muitos, geralmente reunidos em praça pública. Vêm acompanhados de palavras, sons, inspirações. Microfone aberto e poema na mão, eles reafirmam a existência de si e dos outros num vozerio de alta voltagem íntima, social e política. A dinâmica dos saraus, alicerçada em cada um desses movimentos, reconfigura a cena literária das cidades com um valioso bônus: dispara reflexões e fazeres capazes de alterar todo um panorama de realidades.

Em Fortaleza – metrópole onde iniciativas do gênero se espraiam da Barra do Ceará ao Barroso, passando pelo Jangurussu e o Antônio Bezerra – as motivações para realizá-las são inúmeras. Um recente projeto contemplado pela Lei Aldir Blanc visa mergulhar exatamente nessas especificidades de modo a compreender a lógica dessas ações, abrangendo origem, dificuldades, modos de gestão, diálogos e transformações sociais.

“Saraus periféricos: A revolução através da poesia” foi idealizado pelo artista multilíngue cearense David Devir em formato de websérie documental. Os vídeos estão disponíveis no canal homônimo ao projeto, no YouTube, e contam com a participação de Tetê Macambira, Baticum Proletário, Elane Fideles, Talles Azigon, Sonast Bruna e Samuel em Transe. 

Os seis episódios contemplam a trajetória dos saraus Poesia de Leve, Bate Palmas, Coletiva de Mulheres Barrósas, Okupação, Livre e Sarau da B1. Em entrevista ao Verso, David explica que a literatura, a poesia e as pessoas que as fomentam na Capital têm um papel fundamental em seu desenvolvimento humano, por isso a motivação em realizar um documentário sobre o tema. 

“Com eles, entendi que a poesia não é algo que se limita somente à escrita em papel ou a declamações em recitais; a poesia que aprendi com cada um está na ação, no convívio, no questionamento, nas relações sociais”, situa. Segundo ele, os saraus são esses espaços de questionamento, convivência e experimentação, de ter o seu “eu” em evidência e, principalmente, de tecer críticas sociais, “sempre necessárias quando se vive na periferia de Fortaleza”, conforme destaca. 

“A revolução dentro do espaço do sarau, dentre tantas outras, é poder ser menos racista, machista, homofóbico, misógino, xenófobo e acreditar que podemos viver em uma sociedade mais justa, equilibrada, harmônica e próspera”.

Conversas e saberes

As entrevistas com os poetas seguiram um rigoroso cronograma. Foi uma semana intensa de gravações nos locais escolhidos por cada um – preferencialmente nas áreas em que atuam. Nesse processo, David Devir salienta a novidade que foi, para ele, entender a trajetória de vida dos entrevistados e como esse caminhar se conecta aos movimentos de saraus. “A organização do sarau é muitas vezes um fazer que se estende à própria existência do(a) organizador(a), deixando o evento ainda mais pulsante e interessante”, diz.

Por sua vez, no que diz respeito à origem do movimento em Fortaleza, o artista menciona as reuniões que aconteciam na Casa de Juvenal Galeno – ainda hoje realizadas no centro da cidade – e aquelas capitaneadas pela Padaria Espiritual. Contudo, acredita existirem outras ações que não foram catalogadas por estarem "escondidas demais", sobretudo nas periferias, deixando de ganhar a visibilidade que merecem.

“Penso que é extremamente necessário um mapeamento histórico desses movimentos, dessas micro ações que aconteciam nos territórios de Fortaleza no passado. Isso para entendermos de modo mais assertivo sobre os saraus da cidade, não ficando apenas nos que aconteciam no centro”, atenta, mencionando ainda que, na entrevista com o poeta Talles Azigon, ficou marcada a influência indígena e negra nessas iniciativas, já que esses povos são os que trazem o encontro, o círculo e o rito para o Brasil.

“Não à toa, uma das funções que o documentário pretende otimizar é a desmistificação da ideia de que ‘somente os escolhidos’ podem organizar saraus. Não! Todo mundo pode ser um(a) organizador(a). As dicas estão na fala dos(as) poetas”.

Enxergar além

Sonast Bruna, por exemplo – integrante da Coletiva de Mulheres Barrósas, no bairro Barroso – afirma que a iniciativa de criar o grupo se deu por meio de uma inquietação relacionada ao número de mulheres participantes nesses espaços; já Samuel em Transe, do Sarau da B1, sediado no Conjunto São Cristóvão, Grande Jangurussu, situa a ação como um ambiente de encontro para vários matizes, credos e classes. Lá não se fala em preconceito, a não ser para combatê-lo. E assim as falas se alongam por entre todos os entrevistados durante aproximadamente 30 minutos.

Elane Fideles conta um pouco de seu panorama no terceiro episódio da websérie. Ela reside no Conjunto Palmeiras, berço da Cia artística Bate Palmas, grupo que originou o sarau de mesmo nome, em 2012. De lá para cá, a tônica da iniciativa, conforme a arte-educadora e uma das idealizadoras do sarau, é resgatar constantemente os nomes que fizeram e ainda fazem história no bairro.

“Somos o que somos porque temos como referência uma história de luta comunitária e poder popular. No vídeo, quis ressaltar que aprendemos muito lendo livros e na Academia, mas o conhecimento também se dá na relação, na troca de experiências, na poesia, música, exposição de fotografias, nessa construção coletiva. A arte tem esse poder de possibilitar reconhecer outra realidade promovendo o bem comum, de valorização da vida, do respeito às diversidades e da luta contra as coisas que nos oprimem”, enumera.

Também pulsa na perspectiva de Elane a necessidade de contornar a amarga maneira como as periferias são retratadas perante a sociedade. Na visão dela, marcar a potência do Conjunto Palmeiras no fazer artístico é essencial, em detrimento de outros enfoques atribuídos ao lugar.

“Aqui no bairro não existe apenas violência, pois pra falar desse tema temos até que ter uma visão mais ampla sobre. Somos violentados cotidianamente pelos programas policiais, pelo racismo, capitalismo, pelas leis que só funcionam para alguns. A arte é nossa voz, é o grito de resistência, o cultivo de um mundo melhor. E isso se faz todo dia, aos poucos, embora nem sempre seja valorizado”, lamenta.

Para ela, o que falta para que os saraus ganhem cada vez mais espaço, voz e vez é o apoio das entidades públicas, fomentando a realização de projetos culturais de valorização do fazer artístico nas periferias. “Acredito também que mais respeito por parte da própria polícia, que muitas vezes chegou limitando ou mandando parar o sarau.  Na maioria dos casos, esse é o único evento cultural que acontece na comunidade, interrompido por vezes de forma truculenta. É necessário respeitar o que fazemos com tanta dedicação e autonomia”, defende.

A julgar pela boa recepção da websérie no YouTube, geradora de tantos movimentos e reflexões, David Devir enxerga no documentário uma ponte para possibilidades e transformações.

“A revolução vem da ideia de apoio, de comuna, de círculo. Vem do espaço que o sarau consegue criar, de acolhimento e respeito, que estimula as capacidades artísticas e culturais. Vem também do espaço da denúncia, da crítica social, da liberdade de poder falar de sua realidade e, com isso, perceber que ela é parecida com outras. Nesse encontro, todos(as) podem encontrar entendimento, força e conforto”, conclui.


Serviço
Websérie documental “Saraus periféricos: A revolução através da poesia”
Vídeos disponíveis no canal homônimo da iniciativa, no YouTube