Rachel de Queiroz 110 anos: Pioneirismo da cearense é reverenciado por escritoras contemporâneas

Nélida Piñon, membro da Academia Brasileira de Letras, e Angela Gutiérrez, presidente da Academia Cearense de Letras recordam atuação da romancista cearense nas respectivas instituições

Rachel de Queiroz tinha mesmo de nascer em novembro, no meio do br-o-bró nordestino, para, poucos anos mais tarde, descrever o cenário do qual era filha com uma precisão que talvez nenhuma jovem de 19, 20 anos estivesse acostumada a fazer. A autora d’O Quinze, obra clássica sobre a seca que, em 2020, completa nove décadas de publicação, começou a escrever a própria história há 110 anos, num 17/11 como esse. 

Seus olhos primeiro viram Fortaleza, mas 45 dias depois ela já estava em Quixadá, terra da família e principal berço de inspiração da autora ao longo dos 92 anos vividos. Foi também num mês de novembro, faltando pouco para completar 93, que ela se foi, vítima de um ataque cardíaco enquanto descansava numa rede em seu apartamento, no Leblon (RJ). 

Aquele dia 4 da partida marcava ainda 26 anos de sua posse como primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras (ABL), fato que, tempos depois, abriria as portas para contemporâneas suas como a escritora carioca Nélida Piñon, primeira presidenta da mesma entidade, em 1997. “Quando ela toma posse, eu consigo um convite pra ir. Eu queria ver Rachel. Achei que era uma coisa histórica, extraordinária. Eu era uma grande feminista”, lembra Nélida em entrevista via zoom, hoje aos 83 anos de idade.

Mas a cearense não se declarava feminista, pelo contrário, era crítica àquelas que se indentificavam com a causa, mesmo tendo dado importantes passos pela igualdade de gênero. “Ela era uma defensora do poder masculino, sempre foi. A Rachel era amada e admirada pelos homens fortes da Academia. Jamais deixariam de apoiá-la. Foram os homens fortes que puseram a Rachel na Academia, porque ela, talvez, não quisesse tanto”, observa Nélida, que só entraria na ABL em 1989.

“Eu não acho que ela votou em mim, eu tenho minhas desconfianças. Não tinha a menor importância. Talvez ela quisesse guardar o lugar. Ela não quisesse que entrasse uma mulher, porque ela queria muito que num futuro, penso eu, a querida Maria Alice Barroso, uma escritora importante, entrasse. É natural. Ela era uma grande jogadora política. Rachel era de uma habilidade política extraordinária. Ela botava esses políticos de hoje todos numa caixa forte e fechava”, conta a carioca, admitindo que a cearense “tinha muito do Brasil na cabeça dela”, e afastando a grandeza narrativa de sua obra e afastando a grandeza narrativa de sua obra do controverso apoio ao Regime Militar.

A relação das duas escritoras, no entanto, é muito anterior a esses episódios. Nélida devia ter seus 17, 18 anos, quando concluiu o primeiro romance. Naquela época, um vizinho cearense, Dr. Sebastião Peres, pediu-lhe os originais para mostrar a conterrânea. Pouco tempo depois, Nélida teve a oportunidade de conhecê-la pessoalmente e foi recepcionada na casa do Rio “de forma absolutamente calorosa, muito carinhosa” por um “Oi, minha flor!”, além de ser servida com um suco que já não lembra o sabor e alguns biscoitinhos.

“Entre outras coisas, ela diz assim, que eu acho que é a imagem mais forte que me ficou: Seu livro é um cofre, mas tem jóias legítimas e jóias falsas. Você vai ter que aprender a separar as falsas. Aquilo me chocou de uma forma, mas foi determinante para a minha formação, definitivo. Eu não faço outra coisa na minha vida até hoje senão separar as jóias falsas. Para você ver que até hoje eu sou uma perfeccionista na língua portuguesa, né?”, evidencia.

Na ocasião, Rachel ainda disse a Nélida, sem muito entusiasmo, que seu texto lembrava de algum modo o de Clarice Lispector, apesar do gênero diferente.“Eu cheguei em casa, eu chorei. A minha mãe achou que a Rachel de Queiroz tinha me dissuadido de ser escritora. O tempo passou, eu publiquei meu livro (que foi abençoado por Clarice), mas eu nunca mais procurei a Rachel. Eu sempre fui eternamente grata a ela, mas eu não ia incomodá-la”.

Então veio 1977, a cearense se tornou a quinta ocupante da cadeira 5 da ABL, cujo patrono era Bernardo Guimarães. Em seguida, entraram para a Academia outras sete mulheres: Dinah Silveira de Queiroz (1980), Lygia Fagundes Telles (1985), Nélida Piñon (1989), Zélia Gattai (2001), Ana Maria Machado (2003), Cleonice Berardinelli (2009) e Rosiska Darcy (2013).

Tal representação, ainda pouco expressiva passados mais de 40 anos desde o pioneirismo de Rachel, é criticada por Nélida. “Precisamos de mais mulheres. Isso é o que eu tenho que reclamar. Eles são devedores. É preciso. Mas isso, de certo modo, não é uma culpa única da Academia. Essa ocorrência reflete o que ocorre na sociedade. A Academia não é a única que demonstra esse ‘machismo’”, pontua.

Assumir a presidência da ABL foi, aliás, um desafio impulsionado por uma ligação em um dia “histórico”, como recorda a carioca. “Ela (Rachel) me telefona, as chamadas que tínhamos sempre para conversar. Aí ela fala rápido, ela é de uma inteligência muito veloz. ‘Nélida, tenho uma ideia, é perfeito, já tenho a chapa do centenário. José Sarney presidente e você vice-presidente’. Ou seja, eu continuaria como eu estava. Eu parei e respondi no ato: ‘Não, Rachel, eu não aceito.A proposta que você está me dizendo me faz definir: eu vou ser candidata a presidente’. E ela diz a frase, eu nunca esqueci: ‘Neste caso, serei sua eleitora’. E ela não foi. Foi o único voto que eu não tive. Circunstâncias”, relembra. Não houve, porém, nenhum resquício de inimizade.

“Eu gosto muito, gosto até hoje da Rachel. Lembro-me com enorme carinho dela. Era uma sedutora. Podemos dizer isso. Rachel de Queiroz dominava a arte da sedução”. E completa: “O que eu acho é que ela me via como a filha que morreu. Ela dizia uma coisa maravilhosa: ‘Você é parecida comigo. Você tem faca na bota’.”, recorda.

Reconhecimento em casa

Na Academia Cearense de Letras (ACL), a cadeira de Rachel veio em 1994, 17 anos depois de garantido seu lugar na ABL. Outras mulheres já integravam o grupo do Ceará, inclusive. Foi naquela ocasião que a atual presidente da casa, Angela Gutiérrez, a viu pela primeira vez. “O fato de Rachel ter entrado primeiro na Academia Brasileira do que na Academia Cearense deveu-se ao fato de constar nos Estatutos da nossa instituição a exigência do candidato ou candidata ter residência no Ceará. Para superar esse impedimento, o presidente, Poeta Artur Eduardo Benevides, e os demais acadêmicos aprovaram uma excepcionalidade dessa cláusula para os cearenses membros da Academia Brasileira de Letras”, justifica a primeira mulher à frente da ACL.

“Posteriormente, em Bienal Internacional do Livro do Ceará, em que Rachel foi homenageada, tive o prazer de ser-lhe apresentada e de ficar, como se fôramos amigas de longa data, de braços dados, visitando os stands da Bienal”, destaca Angela. A escritora recorda que, cronologicamente, foi contemporânea de ACL por seis anos da romancista cearense, visto que entrou em 7 de outubro de 1997.

Hoje, ela admite, não é incomum que alguns acadêmicos e acadêmicas (as mulheres ocupam 10 das 40 cadeiras da ACL) visitem a estátua de Rachel, posicionada num dos bancos da Praça dos Leões, no Centro de Fortaleza. A instituição celebra os 110 anos da escritora com uma live, logo mais às 19h (www.linkpra.me/acl). “Rachel de Queiroz sempre foi e é uma presença valiosa, querida e respeitada, em nossa Academia e na Literatura Cearense”, finaliza Angela.