A história de muitos cearenses com a obra da escritora Rachel de Queiroz (1910-2003) começa cedo, ainda na juventude. Os livros costumam ser indicados nas aulas de Português e Literatura dos Ensinos Fundamental II e Médio, além de figurarem em questões de vestibular e Enem, por exemplo. Aqueles que optam por aprofundar os conhecimentos nessa área quando ingressam na Universidade podem, ainda, se deparar com professores como Maria Valdenia da Silva (Uece-Quixadá) e Stélio Torquato (UFC-Fortaleza), ambos dedicados a estudar e a ressignificar a vasta produção que a autora de “O Quinze” (1930) nos deixou.
“A minha relação com a obra de Rachel de Queiroz é marcada por grande admiração enquanto leitora desde a adolescência e por um instigante interesse na condição de pesquisadora quando incluí, na minha dissertação de mestrado, uma análise do romance Caminho de Pedras”, introduz Maria Valdenia. Docente do curso de Letras da Faculdade de Educação, Ciências e Letras do Sertão Central desde os anos 2000, ela acredita ter se aproximado ainda mais da autora nas últimas duas décadas.
Com um olhar apurado, a partir da “cidade-casa” da escritora, Maria Valdenia busca instigar os graduandos, futuros professores, a levarem para a sala de aula da educação básica os textos da filha daquele lugar. “Penso que a melhor maneira de prestar-lhe uma homenagem é não silenciar a sua obra, ou seja, precisamos fomentar a formação de leitores para que as novas gerações possam saber quem é Rachel de Queiroz”, defende.
Foi neste sentido que, entre 2016 e 2018, um projeto de extensão interdisciplinar aliou linguagem, ciência e educação no estudo da obra da escritora. A iniciativa “Conhecer para conservar e restaurar áreas da caatinga: dos livros de Rachel de Queiroz ao tripé universitário pesquisa, ensino e extensão” reuniu professores e alunos dos cursos de Ciências Biológicas, Letras e Pedagogia. Os envolvidos mantinham ações com os alunos de escolas públicas de Quixadá, incentivando a leitura do romance O Quinze e de crônicas de Rachel. No momento seguinte, conta Maria Valdenia, estes leitores eram levados para a Fazenda Não Me Deixes, ocasião em que realizavam atividades de conscientização e preservação da caatinga.
Atualmente, porém, não há nenhum projeto em andamento, apesar da docente vislumbrar a criação de um núcleo de estudo, agregando professores e alunos dos cursos de Letras, História e Pedagogia.
“Acho que estamos em dívida com a escritora, considerando que é preciso ampliar o acervo da biblioteca (que leva o nome de Rachel, além de ter recebido várias obras doadas pela autora) e criar projetos, que de forma mais concreta, atraiam os leitores, viabilizando a leitura literária, em especial da literatura cearense”, defende Maria Valdenia.
Releituras da obra
Em Fortaleza, o professor Stélio Torquato, responsável por ministrar as disciplinas de Literatura Cearense, Literatura Popular em Verso e Literaturas Africanas no Curso de Letras da Universidade Federal do Ceará (UFC), admite que, em sala de aula, Rachel de Queiroz tem sempre destaque no âmbito da produção literária da segunda etapa do Modernismo, e não apenas por sua obra O Quinze dar início à chamada fase regionalista.
“Além de leituras da obra da autora na perspectiva do regionalismo, seus textos também têm sido estudados tanto a partir do viés feminista quanto da relação deles com a discussão de caráter social, visto que a denúncia das injustiças sociais foi sempre uma marca da produção tanto literária quanto jornalística de Rachel”, observa.
Trabalhos recentes vinculados à pós-graduação do Departamento de Literatura da UFC, da qual Stélio faz parte, também dão o tom das releituras propostas pela Universidade. “Destaco a dissertação ‘Atualizações e Ressignificações do Mito da Donzela Guerreira’, defendida por Eliana Carlos da Silva sob a orientação da saudosa professora Edilene Ribeiro Batista. Na referida pesquisa, a autora nos apresenta uma interessante comparação entre o romance Memorial de Maria Moura, de Rachel de Queiroz, e o romance Papisa Joana, da americana Donna Cross, destacando nas duas obras o protagonismo feminino em contextos extremamente patriarcais”, conta o professor.
Outra dissertação lembrada pelo docente é “Escritas entrecruzadas: leitura das crônicas e contos de Rachel de Queiroz”, da pesquisadora Regina Helena Ribeiro Silva, sob orientação da Profa. Dra. Odalice de Castro e Silva. “No referido estudo, a autora analisa crônicas e contos publicados por Rachel de Queiroz na imprensa cearense entre 1928 e 1952, destacando como a produção jornalístico-literária da autora cearense dialogou com o desenvolvimento da imprensa brasileira ao longo da primeira metade do século XX”, pontua.
Stélio também deu sua própria contribuição nesse processo de releitura. Em 2015, centenário da seca que nomeou o primeiro livro da autora, ele começou a recontar essa história em cordel. “Levei cerca de seis meses para completar a versão. Dois foram os desafios: 1) Manter ao máximo o estilo da escritora, mantendo palavras e até expressões do livro; 2) Manter o jogo de planos, pois a obra gravita entre a história de Conceição, de Vicente e do drama da família do vaqueiro Chico Bento”, recorda.
Celebrações de aniversário
Para lembrar os 110 anos da escritora nascida em 17 de novembro de 1910 e os 90 de publicação de O Quinze, o cordel de Stélio acaba de ser reimpresso pela Rouxinol do Rinaré Edições, podendo ser adquirido por R$4, em contato via e-mail (profstelio@yahoo.com.br). Já em Quixadá, a professora Maria Valdenia fará parte, nesta terça-feira (17), às 20h, de live intitulada “Por que ler Rachel de Queiroz?”, organizada pelo grupo de pesquisa LIMEFLE - Literatura e as metodologias para a formação de leitores, em seu perfil no Instagram.
A Universidade de Fortaleza, que conta com a Coleção Rachel de Queiroz em sua biblioteca, preparou um podcast com curiosidades sobre essa sessão, formada por 3.100 itens, sendo 2.800 livros e cerca de 300 periódicos doados pelo Instituto Moreira Salles (IMS), do Rio de Janeiro. O UniforCast está disponível nas principais plataformas de streaming (Apple Podcasts, Google Podcasts, Spotify, TuneIn, RSS feed). Devido ao contexto de pandemia, o referido acervo, com livros raros que pertenceram a própria autora, não está aberto à visitação, como explica a gestora da biblioteca, Leonilha Lessa.
“Em 2019, recebemos em torno de 4 mil visitantes, houve um volume acentuado de estudantes de escolas públicas com a participação de 62 municípios. Também recebemos estudantes de biblioteconomia, pesquisadores em geral, a nossa comunidade acadêmica. Mas, infelizmente, no período de pandemia a biblioteca não está recebendo visitantes para área do acervo de Rachel de Queiroz e Cordelteca. Estamos mantendo de forma higienizada para evitar danos”, ressalta.
Quando tudo isso passar, o público poderá ver de perto, por exemplo, cerca de 1.200 obras com dedicatórias de grandes nomes da literatura brasileira, como: Manuel Bandeira, José Américo de Almeida, Carlos Drummond De Andrade, Ariano Suassuna, José Lins do Rego, Lygia Fagundes Telles, Natercia Campos e Graciliano Ramos. “E será possível ter a experiência de estar ao lado de Rachel por meio de sua imagem em realidade aumentada, que foi desenvolvida pelo Núcleo de Tecnologia da Unifor”, finaliza Leonilha, ansiosa para essa reabertura.