Inquieta, de espírito itinerante, Rachel de Queiroz (1910-2003) não manteve vínculos afetivos apenas com um lugar em específico. Cearense além-fronteiras, contornou inúmeras paisagens – seja para tratar de literatura, seja para dar mais um passo nisso de desbravar o mundo.
No que diz respeito às casas onde morou, José Luís Lira, biógrafo e afilhado de formatura da escritora, conta que a quantidade de lares em que ela residiu sintoniza-se ao grande número de territórios palmilhados.
“Digamos que a primeira casa de Rachel é a casa onde ela nasceu, a de sua avó materna, Maria Luiza Saboia de Lima, e de seu avô, Dr. Rufino Franklin de Lima. Localizava-se na Rua da Amélia, 86, atual Senador Pompeu, próxima à atual Rua São Paulo, em Fortaleza”, diz, evocando um logradouro onde hoje existe uma galeria comercial.
A segunda moradia, segundo ele, foi a casa da Fazenda Junco, no distrito Daniel de Queiroz, em Quixadá, hoje pertencente aos herdeiros do irmão da autora, Dr. Roberto de Queiroz, primeiro juiz federal do Ceará. Na sequência, veio a famosa “Casa do Pici”, ou “Casa dos Benjamins”, situada na Rua Antonio Ivo, vizinha ao número 320, no bairro Henrique Jorge.
“Ali, ela residiu nas décadas de 1920 e 1930. Lembro-me de que, quando escrevi a primeira edição do meu livro ‘No Alpendre com Rachel’, não coloquei uma foto da casa no livro porque estive lá e levei, para Rachel, um ramo de um dos pés de benjamins que estão em frente à residência. Antes conversei com ela e perguntei se ainda tinha voltado ao espaço. Ela disse que não, porque seria muito doloroso. Então, não entreguei-lhe o ramo de benjamin, nem coloquei foto da casa na obra”, recorda.
A quarta casa é a da Ilha do Governador, onde a romancista morou quando se mudou para o Rio de Janeiro, em 1939. Lá, dividiu o convívio com Oyama Macêdo, seu segundo marido, com quem casou, em 1940. A cerimônia religiosa foi celebrada por Dom Hélder Câmara (1909-1999), de quem Rachel era amiga. Nos anos 1960, ainda em solo fluminense, mudou-se para o bairro Glória e, finalmente, passou a residir no Leblon, no Edifício Rachel de Queiroz.
“Dizia que seu marido e ela compraram o apartamento na planta e, quando os outros condôminos souberam que ela iria residir naquele prédio, decidiram homenageá-la pondo seu nome no edifício. Apesar da modernidade do Rio de Janeiro, seu apartamento no Leblon era quase uma embaixada do Ceará. Muitos móveis antigos e outras peças foram levados do Estado”, detalha José Luís Lira.
“Ressalto que, ainda criança, ela residiu com os pais no Pará e em Guaramiranga. No Ceará, manteve sua casa na Fazenda Não Me Deixes, em Quixadá, sua verdadeira pátria, como ela definia; em Fortaleza, na Avenida César Cals, na Praia do Futuro, mantinha um apartamento também. Foi lá nosso primeiro encontro”, recorda.
A partir desse panorama, o Verso selecionou três dos principais lares ocupados por Rachel – a Casa dos Benjamins, a Fazenda Não me Deixes e a casa na Ilha do Governador (RJ) – a fim de descortinar aspectos importantes sobre a estadia da literata em cada um desses lugares.
- Casa dos Benjamins, em Fortaleza (CE)
Nesta residência, Rachel vivenciou muitos momentos marcantes. Em 1932, casou com o poeta José Auto da Cruz Oliveira, seu primeiro marido; um ano depois, deu à luz à sua única filha, Clotilde, falecida em 1935 devido a uma meningite; e também escreveu sua obra-prima, o romance regionalista “O Quinze”.
Tombada desde 2009 pela Secretaria da Cultura de Fortaleza (Secultfor), a casa – também conhecida como Sítio Pici – atualmente encontra-se no centro de acaloradas reflexões. Um dos que mais promovem olhares acerca da importância do equipamento é o memorista, poeta e escritor Leonardo Sampaio, cuja relação com o espaço se iniciou em 1967, quando veio do interior do Ceará para morar no bairro Jóquei Clube, em Fortaleza. “Andava por dentro do sítio, apreciando as frutas, os animais selvagens de pequeno porte e pássaros”, conta.
De acordo com ele, o imóvel foi loteado no fim da década de 1970. Na casa, havia um senhor responsável por vender os lotes e depois ficou morando lá com a família. Além disso, duas senhoras idosas moravam em um barraco e foram ameaçadas de despejo. “Fui, então, convidado a ir até lá e, nas conversas, essas mulheres me disseram que eram lavadeiras, engomadeiras de roupas de Dona Clotilde, mãe de Rachel de Queiroz”, situa Leonardo.
Após esses diálogos, Sampaio começou a pesquisar sobre a presença da escritora naquele lar e criou um movimento pela construção do Polo Cultural Rachel de Queiroz. Por meio da associação de moradores do bairro onde o ambiente está situado, em 1983 foi entregue um documento ao até então prefeito César Cals Neto, solicitando a construção do Polo.Desde esse tempo, Leonardo menciona que a solicitação é sempre renovada aos prefeitos(as) de plantão.
“Em 1987, a prefeita Maria Luiza fez um decreto de desapropriação da casa, mas não houve a efetivação do pagamento do imóvel; já em 1995, foi feito o Projeto Parque Rachel de Queiroz pelo Prefeito Juraci Magalhães, mas nada foi feito na área que concerne”, lamenta.
Ele situa também que várias reuniões foram realizadas com a Secultfor para debater sobre as condições do espaço. Também esteve, em grupo, com a Secretaria Municipal do Desenvolvimento Habitacional (Habitafor) para tratar a respeito de uma nova moradia para as famílias que residem na casa. “Conversamos com o proprietário do lar como forma de facilitar a intermediação de negociações com a prefeitura e ele na constituição do propósito elaborado no tombamento. Nada disso avançou”, afirma.
“Os atuais moradores da casa transferem a questão deles no espaço para o proprietário do imóvel. No diálogo que tivemos com o dono, surgiu a ideia de construir casas para as famílias no mesmo terreno, ao lado da Rua Noel Rosa, 405. Cada grupo familiar seria treinado como guias de um projeto de visitação do lar”, complementa, enfatizando que o que mais deseja para o domicílio é a recuperação da estrutura física e a implementação da iniciativa de acesso à sociedade, com atividades de leitura, oficinas culturais e outras.
Resoluções
Por meio de nota, a Secultfor sublinhou que a Casa dos Benjamins é um bem de propriedade privada e foi tombado em 22 de outubro de 2009. Igualmente informou que a Lei do Patrimônio, de 11 de março de 2008, no capítulo IV, sobre os efeitos do tombamento, em seus artigos 22 e 23, assegura que é dever do proprietário do bem tombado mantê-lo em bom estado de conservação, comunicando imediatamente à Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza no caso de extravio, dano, furto ou qualquer ameaça à sua integridade
“O bem tombado também não pode ser demolido, destruído ou mutilado, podendo ser restaurado ou reparado pelo proprietário, mediante prévia autorização da Secultfor”, aponta o texto da nota. “Neste sentido, a Secultfor não foi notificada pelo proprietário acerca de nenhuma iniciativa de restauro ou intervenção no espaço. Também não foi comunicada, pela sociedade civil ou pelo proprietário, sobre propostas para uso do imóvel”, complementa.
A pasta também ressaltou que tem todo o interesse em dialogar com os mais diversos setores para a construção de uma proposta de preservação desse espaço. Além disso, destacou que, atualmente, a Secretaria conta com a parceria da Agência de Fiscalização de Fortaleza (Agefis) para fazer o acompanhamento do estado de conservação dos bens tombados.
“Técnicos da Secultfor realizam visitas regulares nestas edificações a fim de verificar o estado de conservação desses imóveis. Por ser um bem de propriedade privada, a Secultfor não pode interferir na escolha dos moradores e transeuntes do espaço”, expressa o texto.
Idealizador do Grupo Casa dos Benjamins – existente há cinco anos na Capital, como forma de promover ações que resultem no restauro e criação de um espaço cultural no lar – o fotógrafo Gentil Barreira diz que há uma página do movimento na web falando sobre a importância dessa joia única na cidade. “O retorno que temos recebido pela iniciativa tem sido somente o acolhimento simpático da ideia”, diz.
“As pessoas que atualmente moram lá possuem a autorização do proprietário e, provavelmente, graças a elas, a casa ainda está lá, à sombra dos benjamins centenários plantados pela mãe da escritora. Vejo que um espaço preservado e preservando a memória da grande escritora que foi Rachel de Queiroz é um exemplo de possibilidades para que jovens tenham contato com essa história, além de modelo de civilidade e respeito da comunidade a seus talentos”, considera.
- Fazenda Não Me Deixes, em Quixadá (CE)
Localizada em pleno Sertão Central cearense, esta propriedade foi o recanto preferido da escritora e é o espaço que abriga muitas memórias vivas da primeira mulher a adentrar a Academia Brasileira de Letras. Cada cômodo da casa sinaliza o aconchego que Rachel de Queiroz transmitia aos seus, do alpendre aos cômodos do fundo.
A percepção brota desde que a porteira azul da fazenda é avistada ao longe. Detalhe importante: nenhuma das outras moradias do distrito de Daniel de Queiroz possui aquela marca cromática. A informação é chancelada por Daniel Victor, guia da fazenda, responsável por apresentar os detalhes da habitação durante visitas empreendidas ao imóvel.
Pertencente à sétima geração de famílias que trabalharam ao lado de Rachel, Daniel situa que até mesmo a arquitetura do lugar traduz o aspecto de simpatia e acolhimento da autora. Isso porque as portas e janelas abrem para fora. “Na mente de Rachel, quando elas fossem fechadas, significaria que quem estivesse do lado de dentro iria receber um grande e afetuoso abraço”, comenta o guia.
Um projeto iniciado no ano passado, intitulado "Nessa tarde não me deixes", busca, mediante agendamento, apresentar à população – sobretudo àqueles que residem em Quixadá, mas ainda desconhecem a casa – o refúgio querido de Rachel, adentrando as peculiaridades de sua produção e alcance. A iniciativa promove visita guiada, diálogos e apresentações artísticas durante o percurso pela propriedade.
No total, a fazenda – inaugurada em 1954, com área de 928 hectares e distante 30 km da sede de Quixadá – possui sete cômodos, ocupados com peças originais da mobília, fabricadas a partir de materiais retirados da própria casa, dando origem também a tijolos, portas e janelas. Logo no primeiro cômodo, é possível conhecer a biblioteca mantida por Rachel, com estantes à direita e à esquerda.
Os títulos fizeram parte do acervo pessoal da escritora, e muitos volumes são autografados por grandes nomes da literatura nacional. Compõem ainda o cômodo fotografias e objetos de decoração, driblando a fronteira do tempo presente e passado.
Mediante incursão pelo interior do imóvel, ainda é possível conhecer a sala de estar, a cozinha, o local geralmente utilizado para passar roupas e o quarto dos empregados, mantido ainda com camas. Tudo praticamente intacto.
Fora da residência principal, no recinto designado Chalé da Rachel, pode-se sentar em um banquinho defronte ao açude Não Me Deixes. Era nesse ambiente que as inspirações da escritora fluíam, matéria-prima para a construção de várias histórias.
- Casa na Ilha do Governador (RJ)
Foi na Rua Carlos Ilidro, localizada na Ilha do Governador – pertencente ao lado ocidental do interior da Baía de Guanabara, no estado do Rio de Janeiro – onde Rachel de Queiroz viveu com o médico goiano Oyama de Macêdo, seu segundo marido, por mais de uma década.
De aspecto pacato, com poucos habitantes, o local ainda preserva a atmosfera de isolamento tão bem apreciada pela cearense.
O romance "O Galo de Ouro", inclusive – primeiro não ambientado na terra natal da escritora – tem toda a trama ambientada na ilha, refazendo a trajetória de pessoas humildes com as quais Rachel conviveu.
Um detalhe interessante é que a Ilha do Governador também foi refúgio de outros nomes incontornáveis da literatura brasileira, a exemplo de Lima Barreto e Vinicius de Moraes, e de celebrados cantores, como Luiz Gonzaga, Wanderley Cardoso, Assis Valente, Renato Russo e Waldick Soriano.
> Saiba Mais: Parque Rachel de Queiroz
O Parque Rachel de Queiroz – nomeado em homenagem à escritora cearense e compreendendo a segunda maior área verde de Fortaleza – teve obras iniciadas em março de 2019. A proposta, mediante anúncio pela Prefeitura feito à época, é que a área ficasse dentro do Campus do Pici, da Universidade Federal do Ceará (UFC), contando com equipamentos de esporte, lazer e pesquisa abertos à comunidade.
Embora não haja prazo para conclusão das obras, a Secretaria da Cultura de Fortaleza (Secultfor) informou, por meio de nota, que, logo após a assinatura da ordem de serviço pelo prefeito Roberto Cláudio, houve início imediato da primeira etapa do Parque, que compreende os trechos 1,2,5 e 6.
Por sua vez, a Secretaria Municipal de Urbanismo e Meio Ambiente (Seuma) ressalta que, mesmo com a pausa no cronograma de obras e atividades para atender os protocolos de prevenção e combate à Covid-19, tudo ocorreu em ritmo acelerado e os trechos 1 e 2 já estão em fase de conclusão. "Os trechos 5 e 6 estão em fase avançada", complementa a nota.
Os trechos 8, 9 e 10, localizados na área do Campus do Pici, da UFC, fazem parte da segunda etapa da obra, onde as atividades ainda serão iniciadas. Ainda de acordo com a Seuma, o Parque está dividido em 19 trechos no total, sendo que 11 passarão por intervenções com recursos já assegurados pelo Banco Mundial, por meio de operação de crédito externo.
"O Parque compreende 14 bairros da zona oeste da cidade de Fortaleza e sua requalificação faz parte do Programa Fortaleza Cidade Sustentável, iniciativa que visa à integração dos ambientes naturais e construídos da cidade de Fortaleza, impactando de forma positiva na qualidade de vida da população", considera o texto.
A pasta enfatiza ainda que o espaço conta com 10 quilômetros de extensão, atinge 14 bairros e será o maior parque urbano da Capital.